Wednesday 31 January 2007

Memórias do Prós-e-Contras

Vital Moreira começou mal o debate, com aquela espécie de aviso, muito sobranceiro, do género "Eu já fui professor do sujeito que está aí do outro lado, portanto, respeitinho". Foi muito mau. Depois, esteve em geral bem, mas a primeira impressão mata. Aguiar-Branco esteve muito mal em termos argumentativos. Quase nada do que disse faz qualquer sentido. Entre a demagogia e a inteligência escassa, venha o leitor e escolha. A médica do lado do Não falou, desde o início, num tom exaltado, quase a gritar. Não havia necessidade, até porque o que disse foi quase sempre aceitável. A médica do Sim esteve muito bem na primeira intervenção, ponderada nas ideias e clara na exposição.

O primeiro médico que falou na plateia visivelmente não sabe muito de filosofia, tal foi o modo como abordou a questão do estatuto do feto. Sakellarides falou bem, de forma impressionantemente calma e contida. E trouxe factos. Que não são suficientes, mas são importantes. Quando Lídia Jorge começou a falar - e como se previa -, o debate morreu. Foi a pior prestação da noite. Aquele ar com que se dirigiu a Laurinda Alves (que esteve "assim-assim"), tipo "Agarrem-me, senão atiro-me a esta cabra!", não carece de muitos mais comentários. José Manuel Pureza não esteve mal. Sobretudo na intervençao final, onde esteve mais sereno.

Kátia Guerreiro argumentou que o principal nisto tudo é que uma vida que não nasce é menos um engenheiro ou um economista a contribuir para pagar a sua reforma. Muito mau para ela. Muito bom para o Sim. Só depois, em segunda análise, é que se referiu ao "direito à vida". Primeiro, os "meios", depois os "fins". Pior era difícil. Catarina Furtado falou muito bem, quer substantivamente quer no tom. Foi talvez a melhor prestação "global" pelo Sim. Vasco Rato teve alguns comentários mortíferos de utilidade inquestionável. No entanto, e globalmente, esteve um pouco "desenfocado". Não sei se preparou ou não o que ia dizer, mas, se o fez, faltou-lhe ali alguma assertividade e organização na forma de estruturar e comunicar os seus argumentos. Fernando Santos protagonizou o momento "Eu sou muito básico, sim, sei que sou, e voto Não". Bom para o lado do Sim. Para ele, não está em causa a despenalização do aborto. Não é que ele tenha dito que não está "só" em causa a despenalização do aborto: ele disse mesmo que não está em causa a despenalização do aborto, ponto.

O rapaz negro na plateia que falou pelo Não foi de um humanismo assinalável. Tirando um ou outro excesso, parecia Jesus Cristo em pessoa. Mas caiu em algumas falácias, como a de achar que haverá métodos infalíveis de prevenção. E outras. Fátima Campos esteve como pôde, a plateia não ajudava e ela não se conseguiu impôr. "É o que há". Caiu no facilitismo da tratar os membros "jovens" por "tu". O jovem que agradeceu à mãe não o ter abortado dispensa comentários. Fernanda Câncio esteve surpreendentemente calma e straight to the point - uma mulher morta é uma mulher morta e a lei actual não salva embriões nem salva mulheres - é ineficaz.

Sakellarides voltou a falar muito bem: o Não não resolve nada, o Sim não chega, mas é o caminho certo. Do lado do Não, voltou-se a falar no "bebé", num apelo à emoção previsível. Um embrião é um futuro bebé e será, metaforicamente, um bebé. Mas, literalmente? Enfim. Vital Moreira expôs a incoerência de quem fala em "bebés" e "fihos" e não propõe a equivalência do aborto ao infanticídio. E esclareceu porque é que moral e lei não têm de ser inteiramente coincidentes. A médica oficial do Não voltou a berrar. Fernando Santos defendeu a mudança da actual lei para permitir, como única excepção, o caso de perigo de risco para a morte da mulher. Vital Moreira fechou com chave de ouro. Globalmente, o debate foi, apesar de tudo, melhor do que esperava, mas faltou estrutura à coisa. Em vez de ter estruturado o programa tanto em torno das pessoas, Fátima Campos devia ter-se baseado mais nos argumentos de um lado e do outro. Devia ter sido esse o fio condutor, para evitar a fulanização excessiva da coisa, o "Eu acho isto e eu é que sei". Mas podia ter sido pior. A leitura dos dois textos iniciais foi uma aposta completamente falhada.

3 comments:

Fernando Gouveia said...

Obrigado pelo resumo, até porque só vi aprox. a metade final (tentei não ver de todo, para não me chatear, pois pela televisão não dá para dizer o que os outros não dizem).

O rapaz negro na plateia chamava-se Luvumba (Pedro, acho).

Chocou-me o testemunho do miúdo "institucionalizado" (do lado do Não). Não pelo que ele disse (é um miúdo, e fragilizado), mas pelo que isso revela: que os do Não não conhecem limites, que para conseguirem um ícone não lhes repugna atormentar um miúdo com a ideia de que o objectivo do Sim é «matar miúdos como ele»! Vergonhoso.

Entre várias coisas que não vi ditas (talvez tenham sido antes de eu começar a ver), faltou rebater o argumento dos "remorsos" e dos "problemas psicológicos" pós-aborto com isto: os problemas que existam (e o estudo da APF aponta para uma percentagem relativamente baixa) são exactamente potenciados por: (1) consciência da ilicitude; (2) aborto em condições menos dignas; (3) doutrinação (dizem-lhe que é pecado, que são «assassinas de crianças» e outras barbaridades).

Miguel Madeira said...

«faltou rebater o argumento dos "remorsos" e dos "problemas psicológicos" pós-aborto»

Eu nem acho que isso seja um argumento - até acho que "sims" e "nãos" têm uma posição trocada (face ao que seria lógico) nessa matéria.

O natural seria que os pró-escolha (que normalmente dizem que “o aborto é sempre difícil e nenhuma mulher o faz por gosto”) enfatizassem os "remorsos" ou o "sindrome pós-aborto", e que fossem os pró-vida (pelo menos, os que dizem que o aborto vai ser tão banal como o telemóvel) a os desvalorizarem.

Fernando Gouveia said...

«O natural seria que os pró-escolha (que normalmente dizem que “o aborto é sempre difícil e nenhuma mulher o faz por gosto”) enfatizassem os "remorsos" ou o "sindrome pós-aborto", e que fossem os pró-vida (pelo menos, os que dizem que o aborto vai ser tão banal como o telemóvel) a os desvalorizarem.»

Há alguma razão nessa observação, mas como sabemos há muitos sins e muitos nãos, mesmo dentro da mesma cabeça (e como já disse noutro sítio, não obrigatoriamente por hipocrisia, mas muitas vezes por pura falta de parar e pensar um pouco).

Quanto à afirmação de que «o aborto é sempre difícil e nenhuma mulher o faz por gosto», primeiro é preciso definir claramente o que se quer dizer com a palavra «difícil»: difícil decidir moralmente/eticamente se se faz ou não? difícil pelos perigos (legais e de saúde) existentes? difícil (doloroso) suportar a intervenção? difícil ficar bem com a sua consciência após o aborto? Que tipo de dificuldade é essa que se anuncia?
Depois, mesmo para quem aceite a existência dessas dificuldades (todas ou algumas) não é líquido que haja remorsos: isso em princípio só ocorrerá para quem teve "dificuldades" do primeiro tipo que apresentei ou do último, pois são esses que indiciam problemas de consciência, e só esse tipo de problemas poderá resultar (digo eu) em "remorsos". (Mais um, é claro: se houver complicações graves resultantes do aborto — assepticemia, p.ex. — isso pode criar remorsos quanto à opção, mas aí não se trata de dilemas quanto ao destino do feto, mas quanto à má sorte da mulher.)
Quanto ao stress pós-aborto, ele pode ser causado por muitas coisas, nomeadamente as más condições do mesmo. A falácia dos do Não é quererem convencer-nos de que se à "stress pós-facto" (chamemos-lhe assim), então isso é sinal ou mesmo prova que o facto em causa (o aborto) é ética e moralmente errado; ora, há muitas mulheres que sofrem de stress pós-parto, e eu não os ouço concluir daí que parir seja ética ou moralmente condenável...
(Acho que vou aproveitar isto para um post no meu blogue...)

O que eu queria dizer com a refutação do argumento dos "remorsos" e dos "problemas psicológicos" não era que se afirmasse que eles não existem. Todos sabemos que eles existem (para algumas mulheres apenas, os números variam muito de estudo para estudo, et pour cause). O que acho que faltou ser dito é que, havendo quem sinta remorsos, os apoiantes da criminalização do aborto e da culpabilização da mulher têm muitíssimas culpas nisso, pois acrescentam o "pecado" e a ilegalidade às dificuldades meramente médico-sanitárias. Não sei se se pode chamar isso uma refutação do argumento, mas pelo menos é uma réplica e faltou ser dita (eu pelo menos não a ouvi na metade a que assisti, e ouvi o argumento dos "remorsos" por parte do Não).