Wednesday 31 January 2007

Dois posts a ler mais em baixo

O institucionalismo puro e Memórias do Prós-e-Contras.

A lógica do meu Sim (2)

Os pontos 2., 3. e 4. do post precedente são relativamente óbvios, uma vez entendido o ponto 1., que explicarei agora.

1. Há um dilema moral na questão do aborto, devido aos dois valores em conflito: o de uma vida humana, que é, no mínimo, uma pessoa "em potência"; e o da liberdade da mulher. Julgo que o Estado deve estar fora do assunto.

Eduardo Nogueira Pinto resume bem, neste seu post, o dilema moral que está presente - e por detrás - daquilo que é, em primeira análise, inequivocamente uma questão eminentemente jurídica (a da despenalização do aborto até às 10 semanas em estabelecimento autorizado):

A grande questão deste referendo é a de saber se os direitos à vida e ao desenvolvimento do feto devem ou não ceder, dentro de um determinado período de tempo (10 semanas), perante a simples opção de abortar, mesmo que não condicionada por motivos de força maior.

Embora liberal, ou talvez por isso mesmo, eu não tenho uma concepção totalitária da liberdade. Aceito que a minha liberdade ceda perante direitos essenciais do outro. No caso do aborto, o outro é o feto. E, nessa condição, o único direito essencial que lhe assiste é mesmo o direito a viver.

A minha opinião é semelhante à de Vital Moreira (leia-se o post todo do Eduardo). Considero que o embrião, como o feto, é sempre uma "pessoa em potência". (Não há pessoas não humanas, portanto, deixemos de usar a expressão redundante "pessoa humana"). Considero que quanto mais desenvolvido o embrião/feto, mais próximo estará do estatuto da pessoa - de forma contínua, ainda que com momentos chave nesse desenvolvimento. Logo, mais grave será a cessação do seu desenvolvimento. Defendo ainda que há uma descontinuidade no momento em que nasce - lá está - uma pessoa. Respeito quem veja no embrião ou feto o mesmo estatuto que uma pessoa em qualquer prazo. Contudo, essa posição, ao equiparar de forma absoluta embrião/feto a pessoa, é atacável de várias maneiras - não em si mesma (isto é, não de um ponto de vista substantivo, filosófico), mas pela coerência com que é defendida.

Por exemplo, se o estatuto às 10 semanas é exactamente igual ao da pessoa, quantos milhões de pessoas (ou "equivalentes a pessoas") têm sido mortas por essa Europa fora nos últimos anos? Como é que nós, portugueses, sobretudo os defensores do Não que têm essas posições mais absolutas, fazem tão pouco perante tal calamidade? Não é uma vida portuguesa igual a uma vida inglesa? Que diligências se têm feito junto dos outros países e da União Europeia em relação a isto? Queixam-se da hipocrisia da diplomacia relativamente ao escandâlo dos direitos humanos em Cuba e na China, mas, e na Europa, onde se matam centendas de milhares de "pessoas" por aborto todos os anos?

Mais: como é que admitem excepções para o caso de violação e de mal formação, se o direito é absoluto? Como é que não lutam activamente para que essas excepções saiam da lei? Neste e no ponto anterior, para não entrar em juízos de valor sobre o comportamento dos defensores de uma posição mais intransigente relativamente ao estatuto do embrião/feto, só há uma saída: a sua posição não será assim tão absoluta.

A meu ver - e repito que para mim o estatuto vai aumentando de forma contínua, com uma descontinuidade (ou salto) quando ocorre o nascimento -, o dilema moral deve ser deixado à consciência de cada um. Perante um consenso tão parco nesta questão, acho que não deve haver uma imposição a nível penal sobre ela. Percebo - sem ironia - que quem defenda que às 10 semanas, ou mesmo logo a seguir à concepção, se está perante algo que tem o mesmo estatuto de uma pessoa, sofra imenso com o facto de haver abortos. Também me arrepio quando vejo algumas pessoas falarem "apenas" (dos direitos) da mulher, como se do outro lado do dilema moral estivesse um bebé Nenuco ou um ursinho de peluche. É o horror moral no seu esplendor, esta indiferença total perante a vida intra-uterina.

Em suma, mesmo estando a falar de algo que - para alguns, senão todos - envolve, não só mas também, um valor sagrado da nossa civilização, que é a vida, será que o Estado deve impôr uma leitura para todos, de forma coerciva? Julgo que não. Os conceitos de vida humana e de pessoa não são necessariamente idênticos, embora para alguns (o que é respeitável) o sejam. O Eduardo Nogueira Pinto diz aceitar que a sua liberdade ceda perante direitos essenciais do outro - mas, ao votar não, é preciso dizer que ele também deseja coarctar a liberdade dos outros à luz dos seus princípios. Nada de extraordinário, como já disse, visto estar em cima da mesa, para alguns, o valor mais sagrado de todos. Eu partilho da opinião do Eduardo - no seu espírito -, mas, na prática, não defendo a sua aplicação em toda a linha. Julgo defensável haver um período onde esse balanço difícil entre os dois valores em questão caia para o lado da mulher.

Isto, em termos de princípios. Vamos ainda a alguns factos.

O facto é que nenhuma mulher (ou muito poucas, mas prestar atenção a excepções para fazer generalizações é falacioso) levará a cabo uma gravidez que não deseja. Isto é um facto. Quem não concordar com isto, que conviva mais com mulheres. Tal decisão tem uma componente ética clara, como todos sabemos (ou deveríamos saber): o de achar que não é correcto, justo, aceitável, trazer ao mundo um inocente sem suficientes perspectivas de vida e de felicidade. Claro que este não é o único argumento na mesa: é um. Eu escrevi que era "uma" componente. Convém ter calma a discutir este assunto. Não há absolutos. Há outros valores em questão, como o do estatuto do feto/embrião.

Se enfatizo este ponto, é porque acho condenável a cegueira de não perceber que uma mulher nunca vai levar adiante uma gravidez indesejada, independentemente do que a lei diga. Não reconheço autoridade a mim próprio ou ao Estado para julgar uma mulher que aborte, embora perceba que outros, com concepções diferentes das minhas relativamente à vida intra-uterina, defendam que seja imposta a sua visão - tal como (é uma analogia, calma) eu também sou pessoalmente contra a pena de morte e acho que ela deve ser proibida (a analogia não tem que ver com o aborto vs pena de morte, mas com o querer que a lei inclua um determinado princípio que eu defendo e que possivelmente não é defendido por todos). Aliás, parece que todos os portugueses concordam com isto, dado o consenso a favor da despenalização. Como, então, manter a penalização?

Mais factos: 1) A lei actual é ineficaz; 2) A lei actual portuguesa está também muito afastada do que é comum nos nossos parceiros europeus; 3) Se o Sim ganhar, o aborto continuará a ser crime em grande parte do período de gravidez. Portanto, é incorrecto dizer que a vida intra-uterina deixará de estar protegida. Continuará a ser um bem jurídico, apenas não absoluto, apenas não absolutamente inultrapassãvel em todo e qualquer período de gravidez.

Finalmente, muitos argumentam com o "e às 10 semanas e 1 dia"? Esta falácia já foi desmontada por muitos, e é verdadeiramente extraordinário que ela continue a ser apresentada de forma supostamente séria. E se o défice público for 3.1% do PIB, não há multa? E andar na auto-estrada a 121 km/h? E chumbar com 8.4 valores? Não vale a pena invocar o valor superior da vida para este argumento em particular. Pode ser usado de um posto de vista substantivo, mas não formal. Havendo um direito que não é absoluto e levando isso - por hipótese - a uma separação entre uma fase em que se permite comportamento A e outra a comportamento B, é inevitável ter de escolher um ponto de separação. E um ponto de separação implica uma descontinuidade. Não há volta a dar aqui.

Ora, a escolha das 10 semanas tem algumas razões objectivas por detrás dela. Objectivamente, também, a escolha das 10 semanas é mais restritiva que aquilo que vemos nos restantes países europeus onde o aborto não é sempre penalizado. Ou seja, julgo que se o Sim ganhar, estaremos por uma proposta que encerra um compromisso aceitável: a defesa irrevogável da vida, consagrada na criminalização da cessação do desenvolvimento do feto após as 10 semanas, sendo a possibilidade de abortar sem enfrentar sanção penal, se tal for feito em locais autorizados e antes das 10 semanas a excepção que consagra o equilíbrio entre a defesa do valor da vida e da liberdade de escolha da mulher.

Em suma, não creio que haja qualquer aspecto radical no facto do Sim ganhar.

Finalmente, breves comentários sobre os outros pontos do post anterior. Sou contra a realização de referendos nestas matérias, mas é o que temos na mesa. A pergunta não é a melhor, mas é a que há. Discordo da comparticipação do aborto, mas: i) não é seguro que isso vá acontecer; ii) se isso acontecer, pode ser revogado por decisão do governo, sem necessidade de recurso ao referendo; iii) mesmo que isso aconteça, julgo que isso é um preço aceitável a pagar pelo fim de uma injustiça bem maior.

É preciso frisar até a exaustão que nenhuma mulher faz um aborto "sem qualquer justificação", como quem vai ao cinema. Uma ou outra excepção só confirmam a regra.

É preciso também insistir que a defesa da vida intra-uterina continua a ser consagrada na lei de forma inequívoca se o Sim ganhar.

É preciso reiterar que legalizar não é liberalizar: a obrigatoriedade do Estado legislar sobre o assunto permite que sejam impostos alguns passos intermédios antes da aceitação do abortamento, como sejam o aconselhamento e a imposição de um período de reflexão.

Votar Sim não impõe nada a ninguém. Nem mesmo - num ponto de vista prático e realista - ao feto, porque todos concordamos que a lei actual não impede nenhuma mulher de fazer um aborto. Uma lei ineficaz que dura e perdura é sinal de um Estado que não se dá ao respeito. (Um ponto a que tu, Henrique, o Formalista, poderias ser mais sensível).

Dois comentários finais que ainda cabem neste post:

i) a série "Falácias do Não" tem um intuito muito simples: mostrar que o único argumento intelectualmente aceitável da parte do Não é o que diz respeito (adivinhem lá) à defesa de que o Estado deve impôr uma visão em particular sobre a não possibilidade de trade-off, em qualquer período que seja, da defesa do que é uma pessoa em potência face à liberdade da mulher;

ii) a comparticipação do aborto não é necessária para que algo "na prática" mude, mesmo para as mulheres com menos condições. Logo, legalizar sem comparticipar já é uma grande mudança. Abordarei isto num outro post.

PS: como é que alguém que defende de forma intransigente o direito à vida pode argumentar, em defesa da vida, que esta é um "meio" para coisas como o crescimento populacional? Como é que isto pode vir de um partido de direita, humanista? Ou estamos no "vale tudo", ou então, talvez com maior probabilidade, estes senhores não sabem mesmo do que falam. Que os perdoem quem quiser e puder. Eu não consigo.

O institucionalismo puro

Uma espécie ainda mais rara que o liberal puro tem sido avistada ultimamente: o institucionalista puro. Separa-os a substância do que defendem, une-os a forma como o fazem: sem fazer qualquer concedência. A pureza é sagrada e inviolável.


Pode o Estado regular os monopólios? O liberal puro responde: não - é uma interferência inaceitável nos mecanismos de funcionamento de mercado. O Estado não deixa privatizar os rios? Está mal, responde o liberal puro - os rios deviam poder ser privatizados.


Aos institucionalistas "puros", o que importa é discutir os processos, a forma como as instituições funcionam. Basicamente, interessa-lhes o "pré-político". Discutir uma proposta de lei que tem impacto em N pessoas, mas que surgiu de uma forma institucionalmente criticável? Não vale a pena. Ignora. Abstém-te. Mesmo se - argumentam alguns - há mulheres que correm riscos vários, ao fazer um aborto clandestino? Não interessa: a pergunta do referendo está mal formulada. E se - argumentam outros - aumentar o atentado contra a vida humana caso o Sim vença? Não interessa: nem sequer devia haver um referendo sobre estas matérias.

O institucionalista puro é uma construção meramente teórica, caricatural - ao contrário do liberal puro, que de facto abunda por aí e só pode ser alvo de apetecíveis retratos -, a que o meu caro Henrique Raposo parece aspirar. Ele não cede um milímetro na sua grelha. Se não é processualmente correcto, joga fora. Despreza. Sem concessões. Institucionalista que se preze, não suja as mãos. A posição neste referendo, com tanto motivo de crítica "formal", só pode ser a abstenção. É a única forma de garantir que a pureza do institucionalismo não é afectada.

Subscrevo total e militantemente a preocupação do Henrique relativamente ao deserto institucional que nos cerca. Portugal é, de facto, uma palhaçada nesse aspecto. Só não posso concordar como o desprezo absoluto por tudo o resto com que esse institucionalismo é trazido ao debate. Para quem não gosta de ver "a brigada do algodão branco" noutras coisas, é obra.

Tudo em excesso faz mal, Henrique. Abraço,

Memórias do Prós-e-Contras

Vital Moreira começou mal o debate, com aquela espécie de aviso, muito sobranceiro, do género "Eu já fui professor do sujeito que está aí do outro lado, portanto, respeitinho". Foi muito mau. Depois, esteve em geral bem, mas a primeira impressão mata. Aguiar-Branco esteve muito mal em termos argumentativos. Quase nada do que disse faz qualquer sentido. Entre a demagogia e a inteligência escassa, venha o leitor e escolha. A médica do lado do Não falou, desde o início, num tom exaltado, quase a gritar. Não havia necessidade, até porque o que disse foi quase sempre aceitável. A médica do Sim esteve muito bem na primeira intervenção, ponderada nas ideias e clara na exposição.

O primeiro médico que falou na plateia visivelmente não sabe muito de filosofia, tal foi o modo como abordou a questão do estatuto do feto. Sakellarides falou bem, de forma impressionantemente calma e contida. E trouxe factos. Que não são suficientes, mas são importantes. Quando Lídia Jorge começou a falar - e como se previa -, o debate morreu. Foi a pior prestação da noite. Aquele ar com que se dirigiu a Laurinda Alves (que esteve "assim-assim"), tipo "Agarrem-me, senão atiro-me a esta cabra!", não carece de muitos mais comentários. José Manuel Pureza não esteve mal. Sobretudo na intervençao final, onde esteve mais sereno.

Kátia Guerreiro argumentou que o principal nisto tudo é que uma vida que não nasce é menos um engenheiro ou um economista a contribuir para pagar a sua reforma. Muito mau para ela. Muito bom para o Sim. Só depois, em segunda análise, é que se referiu ao "direito à vida". Primeiro, os "meios", depois os "fins". Pior era difícil. Catarina Furtado falou muito bem, quer substantivamente quer no tom. Foi talvez a melhor prestação "global" pelo Sim. Vasco Rato teve alguns comentários mortíferos de utilidade inquestionável. No entanto, e globalmente, esteve um pouco "desenfocado". Não sei se preparou ou não o que ia dizer, mas, se o fez, faltou-lhe ali alguma assertividade e organização na forma de estruturar e comunicar os seus argumentos. Fernando Santos protagonizou o momento "Eu sou muito básico, sim, sei que sou, e voto Não". Bom para o lado do Sim. Para ele, não está em causa a despenalização do aborto. Não é que ele tenha dito que não está "só" em causa a despenalização do aborto: ele disse mesmo que não está em causa a despenalização do aborto, ponto.

O rapaz negro na plateia que falou pelo Não foi de um humanismo assinalável. Tirando um ou outro excesso, parecia Jesus Cristo em pessoa. Mas caiu em algumas falácias, como a de achar que haverá métodos infalíveis de prevenção. E outras. Fátima Campos esteve como pôde, a plateia não ajudava e ela não se conseguiu impôr. "É o que há". Caiu no facilitismo da tratar os membros "jovens" por "tu". O jovem que agradeceu à mãe não o ter abortado dispensa comentários. Fernanda Câncio esteve surpreendentemente calma e straight to the point - uma mulher morta é uma mulher morta e a lei actual não salva embriões nem salva mulheres - é ineficaz.

Sakellarides voltou a falar muito bem: o Não não resolve nada, o Sim não chega, mas é o caminho certo. Do lado do Não, voltou-se a falar no "bebé", num apelo à emoção previsível. Um embrião é um futuro bebé e será, metaforicamente, um bebé. Mas, literalmente? Enfim. Vital Moreira expôs a incoerência de quem fala em "bebés" e "fihos" e não propõe a equivalência do aborto ao infanticídio. E esclareceu porque é que moral e lei não têm de ser inteiramente coincidentes. A médica oficial do Não voltou a berrar. Fernando Santos defendeu a mudança da actual lei para permitir, como única excepção, o caso de perigo de risco para a morte da mulher. Vital Moreira fechou com chave de ouro. Globalmente, o debate foi, apesar de tudo, melhor do que esperava, mas faltou estrutura à coisa. Em vez de ter estruturado o programa tanto em torno das pessoas, Fátima Campos devia ter-se baseado mais nos argumentos de um lado e do outro. Devia ter sido esse o fio condutor, para evitar a fulanização excessiva da coisa, o "Eu acho isto e eu é que sei". Mas podia ter sido pior. A leitura dos dois textos iniciais foi uma aposta completamente falhada.

Tuesday 30 January 2007

Céptica, serena, realista

A declaração de voto do Luís Aguiar-Conraria.

Preciosismo, ou talvez não

Não um voto no Não, caro Pedro, mas uma cumplicidade com o "status-quo" - dadas as regras deste referendo. Logo, e por isso mesmo, sem dúvida que uma cumplicidade com o Não.

São coisas diferentes, mais do que no grau (que releva para o resultado final), na sua natureza (que releva para a motivação do agente). E a natureza - neste caso, como em todos - tem precedência sobre o grau do que quer que esteja em causa.

Falácias do Não (7)

"E se tu não tivesses nascido, como é que era? Gostavas de ter sido abortado? Como é que podes apoiar o Sim?"

Esta ideia propõe um exercício contrafactual - e, nisso, pressupõe a legitimidade de o fazer - que é inaceitável. E é inaceitável porque esse exercício é ontologicamente absurdo. Melhor: é "o" absurdo. Simplesmente, "não aplica". Uma coisa é perguntarmos a alguém, que existe, o que sentiria se, no decorrer da sua existência, tivesse escolhido, digamos, estudar Matemática em vez de Filosofia. Outra coisa, qualitativamente diferente, é perguntar a alguém, que existe, como seria se nunca tivesse chegado a existir. Não é aceitável, em termos formais e mesmo em termos substantivos, fazer este tipo de pergunta. É falacioso.

Há toda a legitimidade - e falo de legitimidade formal - em defender que um aborto é tão grave como um homícidio de uma criança saudável de 7 anos ou um bebé indefeso de 6 meses. Pode ser "chocante" para alguns fazer tal comparação, mas não há nada de lógica ou ontologicamente inaceitável nessa asserção. Já a ideia do "E se tu tivesses sido abortado?" é (ontologicamente) inaceitável (pelo que não pode ser colocada). Logo, cartão vermelho, vermelhíssimo, para quem o disser. Expulsão directa, irrevogável e inequivocamente assumida. Pedindo emprestada uma assertividade extra ao meu caro Henrique Raposo, declaro o seguinte: quem não compreender e aceitar isto que acabei de escrever, não merece estar num debate. Mas pode lá estar.

(Só que não o merece, mas pode lá estar. Mas não o merece.)

Mas mata sempre

"É absolutamente injusto. Confere-se o direito à mulher a decidir o que fazer com os seus genes e ao homem não. Por isso, aborto sim. Mas também a pedido do homem."

O riso conseguido mata o visado. O riso falhado mata o próprio.

Legalizar não é liberalizar (1)

O texto que Vasco M. Barreto publicou, sobre o modelo Francês que regulamenta o aborto em estabelecimentos autorizados, merece mais destaque, porque este é um dos argumentos fundamentais para conquistar alguns indecisos, e isso é o que mais deve preocupar os apoiantes do Sim neste momento. Segue-se a parte relevante do texto:

Uma mulher que queira fazer uma IVG em França tem de se submeter a duas consultas obrigatórias:

Na primeira consulta:

1. É informada por um médico das técnicas de IVG, dos riscos para a sua saúde e para a sua fertilidade futura.

2. O médico sugere uma consulta com um “assistente social”. Esta consulta não é obrigatória.

3. A mulher recebe um atestado de presença e folhetos informativos.

Na segunda consulta (que ocorre com um intervalo de pelo menos uma semana depois da primeira, a menos que haja risco de não se cumprir o prazo legal):

1. A mulher apresenta o atestado de presença obtido na consulta anterior.

2. São discutidos dados referentes à gravidez - data da última menstruação, data do início da gravidez, evolução da gravidez, análises entretantos realizadas (ao sangue, ecografias…) -, é feita a história clínica, bem um exame clínico.

3. No fim da consulta a mulher faz um novo pedido de IVG por escrito e o médico entrega-lhe uma certidão comprovativa de que o protocolo da consulta foi seguido. Estes dois documentos serão depois entregues ao médico que realizará a IVG.

4. A data da realização da IVG é então fixada. Um médico pode recusar a prática de uma IVG. A ser o caso, deve informar imediatamente a mulher da sua recusa e sugerir outro(s) médico(s).

Inocentes úteis

(...) E, reconheça-se, não há maneira de apresentar de maneira honesta – não necessariamente imparcial, mas, ao menos, plural, complexa, como é – a questão do aborto a uma criança de cinco anos. Não há. Estão aí envolvidos aspectos biológicos, éticos, sociais etc., etc., etc., que vão muito além da capacidade de compreensão de uma criança e que, a rigor, nem os adultos dominam com segurança. Por isso os cartazes antiaborto postos nas mãos das crianças são abusivos. Envolvem as crianças num tema que não dominam e de que deveriam ser poupadas enquanto não tivessem os elementos de que precisam para formar uma posição ou para, ao menos, terem dúvidas.

E põem asneiras nas bocas, ou nas mãos dos próprios filhos – "Sou feliz porque nasci. Obrigado, pais", foi um dos cartazes vistos nas mãos de uma criança na manifestação de domingo. Podia ser "Sou infeliz porque nasci, malditos pais" , "Sou mais ou menos porque nasci, pais", "Sou engenheiro-químico porque nasci, olá pais" ou "tenho cancro e vou morrer porque nasci, adeus pais", para não falar em "tenho fome, fui violentada, humilhada e espancada porque nasci".

Mas sem crianças não se fazem manifestações antiaborto porque o que está subjacente na exposição das crianças e dos seus cartazes é que os amigos da vida e das crianças são pelo NÃO, e os que estão pelo SIM são, necessariamente, inimigos da vida e detestam as crianças e são feios e muito maus. É para servirem de prova e de testemunho que as crianças são levadas às manifestações antiaborto, muito embora não saibam exactamente o que estão ali a provar ou a testemunhar. São inocentes. Mas são úteis.

Excerto do artigo de hoje de Mário Negreiros.

A distribuição desigual do livre-arbítrio



Vejo, com surpresa, Paulo Pinto Mascarenhas, ao escrever "sem qualquer ponderação ou o mínimo critério", entrar na lógica de tratar as mulheres como seres infantis, irresponsáveis, que - fica mais que subentendido - não merecem a mesma consideração que nós homens. Fica a sugestão de que elas precisarão, para tomar uma decisão que as aflige e atormenta mais que ninguém, de se encontrar com sociólogos (?), como alguns propuseram, talvez ir a um notário (?), quiçá invadir a RTP a um Domingo para perguntar a Marcelo (?) se ele acha que os motivos que elas têm para fazer o aborto (e pisco o olho a alguns "praxeologistas") se enquadram na sua lista de justificações (ia escrever "justificações aceitáveis", mas não quis travestir as palavras de Marcelo: ele podia ter dito "sem uma justificação aceitável", mas optou, de certeza que conscientemente, por um cabal e sorridente "sem qualquer justificação").

PS: leia-se ainda este post de Tiago Geraldo e a resposta de PPM.

O riso (que) mata

É proibido, mas pode-se fazer. Mas é proibido.

Monday 29 January 2007

Falácias do Não (6)

"Ao contrário de países como a França, Áustria, Lituânia, Eslovénia e Países Nórdicos, e agora a Alemanha, não oferecemos praticamente incentivos à procriação. E respondemos com uma proposta de ‘despenalização’ do aborto ou melhor, como alguém lhe chamou, de uma ‘liberalização legalizada’ do aborto!"

Valentim Xavier Pintado (VXP), professor de Economia na Universidade Católica, no Expresso deste Sábado.

VXP descontextualiza a discussão do aborto, apelando às consequências que um aborto tem para o crescimento populacional. Apelos a Consequências são uma falácia comum, um caso particular de Apelo a Motivos (em vez de razões). Atente-se na distorção que o "respondemos" introduz. Claro que é retórica, mas nestas questões - como Marcelo tem ilustrado melhor que ninguém -, retórica é normalmente sinónimo de demagogia pura. Repare-se ainda como a razão dada, mesmo que não fosse falaciosa, é "instrumental": implícito está que os filhos são um meio para combater o inversão da pirâmide etária, e não um fim em si mesmo. Haverá quem, na ala liberal do Blogue do Não, se disponibilize para apontar esta apropriação "colectivista", quase made in China, daquilo que é uma pessoa humana em potência? Parir para bem da Nação, sim senhor. Muito liberal.

Veja-se ainda isto.

Uma frase de ouro

Que resume muita coisa: Longe da vista, longe do coração.

Uma proposta moderada e conservadora

Se o Sim ganhar, o aborto continuará a ser crime se cometido em 75% do período de uma gravidez - os 75% em que o feto mais desenvolvido está.

Se o Sim ganhar, o aborto deixará de ser crime até um período (10 semanas) que é significativamente menor que aquele permitido noutros países europeus (12, 16, 20 semanas).

Se o Sim ganhar, Portugal será o terceiro país, a seguir à Irlanda e à Polónia, com leis mais restritivas sobre a prática do aborto.

Como não concordar, então, que a proposta em cima da mesa é, com todos os seus defeitos, uma proposta moderada e conservadora, que procura um equilíbrio entre a mudança que muitos julgam necessário fazer e a situação que sempre se viveu em Portugal? Ninguém propôs um prazo de 16 vou 20 semanas. Não há nada de "revolucionário" em despenalizar e legalizar o aborto até às 10 semanas, face ao que vemos por essa Europa fora. E não podemos invocar a Europa apenas para comparação do PIB ou para as missões conjuntas em sítio X.

Mais - e isto é um facto, não há aqui qualquer pendor anti-clerical -, hoje em dia, apenas Portugal, a Irlanda e a Polónia têm leis que criminalizam o aborto a pedido da mulher realizado em todo e qualquer período. Será natural, então, achar que a actual legislação nestes países está, pelo menos em parte, ligada ao facto de a religião católica ser predominante. [E o facto de em Espanha a interpretação da lei ser mais distendida não implica que a condição proposta seja apenas suficiente, mas não necessária, porque a lei é de facto restritiva, a sociedade é que resolveu contorná-la, de uma forma que nunca sucedeu em Portugal]. Nada de mais, por si só, naturalmente.

Contudo, será lícito que o Estado tenha uma lei que criminaliza comportamentos com base naquilo que uma determinada crença religiosa defende como certo? A polémica no assunto é incontornável na questão do aborto. As opiniões filosóficas dividem-se. Logo, será cego não olhar para as "excepções" que se vêem na Europa relativamente a esta questão e daí tirar algumas conclusões.

A resposta à pergunta feita não pode ser um não absoluto. Mas não nos podemos esquivar a esta questão - repito, sem qualquer tom de guerrilha contra a Igreja em Portugal, mas colocando a questão uns furos acima - do ponto de vista político e, se possível (o que é difícil), desligado até daquilo que presentemente se discute. Ou seja, aquilo que tão facilmente apontamos a casos que todos conhecemos noutras geografias - as leis que vêm ou aparentam vir e/ou encontrar justificação nos ditames de uma certa religião -, devia ser também motivo de discussão civilizada.

Perguntas


De acordo. Também não gosto de referendos sobre estas matérias, mas depois do "arranjinho" entre Marcelo e Guterres, que opção é que havia para ponderar o que quer que fosse, com implicações legais, sobre o tema?

E pergunto: não será o tema também demasiado complexo e intimista para que o Estado imponha uma visão particular a todos? E não será o referendo um "sapo" deglutível face à necessidade de remover essa intromissão? É verdade que a Abstenção, comparada com o Não, contribui na margem para essa remoção. Só estranho um pouco a abstenção quando o argumento usado tem a ver com o "intimismo" do assunto, com o ser uma "questão de consciência", etc. Por outro lado, para quem estranhar de forma tão absoluta que alguns liberais possam estar, num assunto que seja, "ao lado" do Bloco de Esquerda, dá algum sinal de como vê a política e a politiquice. Qual é a impossibilidade de haver uma convergência em determinadas opiniões - que não necessariamente na forma de as fundamentar? Há dias, recebi um email que me "desafiava" a explicar como é que a despenalização (e legalização) do aborto até às 10 semanas podia ser uma medida liberal, quando o PCP concordava com ela. Acho que está respondido.

Pergunta acessória

Será, ou não, criticável que Marcelo, se o Sim ganhar, não venha a fazer nada para que a lei despenalize as mulheres que abortam após as 10 semanas?

Sunday 28 January 2007

Outros Sins (3)

De José Miguel Júdice e de Pedro Morgado.

Falácias do Não (5)

"A vitória do Sim não vai acabar com o aborto clandestino."

Pois não! Mas vai atenuar problemas a ele ligados.

expliquei atrás (em nota final) que na avaliação do carácter falacioso de um argumento não importa considerar se ele é ou não importante ou definitivo para votar Não ou Sim, mas somente saber se ele contribui para reforçar a causa que é suposto reforçar. Neste exemplo, como será óbvio, temos, novamente, uma Falácia da Dispersão, mais concretamente, de Falso Dilema. Claramente, a ideia citada é falaciosa porque pressupõe que se a vitória do Sim não resolve "completamente" o problema do aborto clandestino, então, mais vale ficar tudo como está. É o absolutimo do falso dilema: "ou sim ou sopas". Arremessar esta ideia contra os apoiantes do Sim, por estes terem como preocupação grande a diminiuição dos problemas relacionados com o aborto clandestino, como se eles sugerissem que uma vitória do Sim iria acabar com todos os problemas, não é aceitável, porque distorce o que o opositor diz ou pretende dizer.

A afirmação em si mesma - isto é, ignorando a parte em que ela tenta argumentar contra algo que os opositores efectivamente não defendem (que o aborto clandestino desaparecerá totalmente) - só não seria falaciosa se os que usam este argumento fossem indiferentes ao facto de algumas mulheres, ainda que não todas, poderem ser beneficiadas com a vitória do Sim. (Repito que isolamos o argumento; claro que não interessa somente olhar para as mulheres). Como não acredito que essas pessoas, que demonstram uma preocupação particular pelas mulheres que passam por estas situações, sejam indiferentes ao caso particular de cada mulher, só posso concluir que é usado, conscientemente ou inconscientemente, um argumento falacioso.

Saturday 27 January 2007

Adenda sobre a despenalização dos "fornecedores" do aborto

Cada vez melhor







8. "Aliás, no plano das motivações, convém sublinhar que, já hoje, se admite o aborto eugénico, que tem por motivação a imperfeição biológica do feto."

Factos irrelevantes

As "companhias" são uma coisa irrelevante para qualquer debate: são um argumento ad hominem - falacioso, inaceitável. Não espanta que uma pequena facção à esquerda pegue em algumas coisas com ganas revolucionárias, nem que, à direita, haja quem se delicie com tão boa oportunidade para um contra-ataque que é o combustível da clubite e da luta de facção tão comum entre nós. Mas, repito: são irrelevantes, estas notícias. Irrelevantes factos.

Os porquês do Sim de Pedro Lomba

Não tenho argumentos nos quais confie em absoluto. Sou por um "sim" relativista e compromissório. Voto "sim" por um motivo legível: numa controvérsia tão difícil e irresolúvel como a do aborto, o "sim" alarga as nossas possibilidades de resposta aos problemas que o aborto coloca, o "não" fecha essas possibilidades. O "sim" permite-nos evitar as consequências nocivas da aplicação desta lei, conservando o princípio de que o aborto é crime para além das dez semanas. O "sim" permite-nos defender que, sem punição penal para as mulheres que abortem até às dez semanas, o Estado não pode deixar de desmotivar o recurso ao aborto através de centros de aconselhamento e de outros mecanismos de informação e defesa da vida. Vou votar "sim" porque acredito nestes compromissos, porque é no "sim" que encontro maior capacidade para acomodar perspectivas diferentes e combater o arrastamento do problema. Não são razões que me deixem inteiramente confortável. Mas são razões que me fazem pensar que, neste momento, neste Portugal de 2007, o "sim" é a escolha mais desejável.

Subscrevo esta leitura do artigo de Pedro Lomba:

O "dom" da autonomia

Embora não queira (nem vá) explorar esse flanco, é incrível a forma dissimulada e sorridente como alguns passeiam por aí o seu paternalismo, infantilizando as mulheres de uma forma que roça a misoginia. Palavras para quê? Veja-se este vídeo até ao fim.

Friday 26 January 2007

Da essência e legitimidade do lucro no negócio do aborto clandestino

Este post analisa a essência - as diversas componentes - do lucro no negócio do aborto e a legitimidade de cada uma delas. Apesar de ser algo longo e muito ligeiramente técnico, será crucial para três importantes objectivos:

1. Desmistificar a diabolização que se faz, de forma inaceitavelmente generalista: i) daqueles que providenciam o aborto clandestino; ii) do lucro por eles recebido;

2.
Defender que é inaceitável que, numa situação em que a mulher não seja penalizada, os auxiliares do aborto o sejam;

3. Combater a ideia de que só com a comparticipação do aborto por parte do Estado e que "algo efectivamente mudará, sobretudo para as mulheres mais pobres". Isto não tem razão de ser. O fim da ilicitude do aborto, por si só, permitirá melhorias de vária ordem.

Este post abordará os dois primeiros objectivos supra mencionados, ficando o terceiro para um post à parte.

Comecemos por um ponto irrefutável: uma mulher só consegue fazer um aborto não auto-infligido se alguém a ajudar. Excluindo casos particulares de caridade - de todo o modo ilegal, com a actual lei - só haverá quem esteja disposto a fazê-lo mediante uma compensação. Nada de particularmente surpreendente. O lucro obtido no negócio do aborto é, por conseguinte, condição não só necessária, mas verdadeiramente intrínseca à existência, numa economia livre de mercado - ainda que clandestina - para que um aborto possa ser realizado.

É preciso entender que na avaliação da legitimidade do lucro no negócio do aborto temos de ter em conta a "essência" desse negócio, para avaliarmos, com honestidade, em que é que isso contribui para uma maior ou menor legitimidade. Ou seja: para aqueles que tenham por hábito criticar todo ou algum lucro obtido através de trocas livres entre adultos, é preciso ver o que é que o negócio do aborto tem de diferente. Senão, não estarão a criticar a legitimidade do lucro no negócio do aborto, mas somente do lucro em geral. (Já sei que alguns quererão discutir a expressão "trocas livres", peço apenas que atentem, tanto quanto possível, ao ponto principal do post. Grato em antecipação.)

Pensemos numa clínica clandestina, que funcione num andar arrendado e que empregue um médico e dois ajudantes. O lucro desta clínica pode ser dividido, como o de qualquer outra empresa, em 1) lucro normal e 2) rendas económicas. Por rendas, os economistas entendem tudo aquilo que é auferido para além do lucro normal. O lucro normal diz respeito à remuneração que os factores empregues poderiam obter numa actividade alternativa em situação de concorrência perfeita, isto é, onde nenhum agente económico tivesse qualquer poder de mercado. E isto tendo em conta o risco inerente ao negócio.

No caso em questão - o do negócio do aborto na clandestinidade -, podemos proceder a uma subdivisão das duas componentes essenciais (e gerais) do lucro total obtido. O lucro normal subdivide-se em 1.1) lucro normal sem penalização e 1.2) prémio de risco por penalização; as rendas económicas subdividem-se em 2.1) rendas por informação imperfeita, 2.2) rendas por "aproveitamento" da situação de fragilidade da mulher e 2.3) rendas relativas a outros factores.

1.1) O lucro normal sem penalização tem em conta a remuneração que o pessoal médico e de enfermagem exige receber para fazer o aborto no sentido estrito de estar a realizar uma actividade quando poderia estar a realizar outras - e isto assumindo que não existe penalização para o aborto (estamos a estudar cada componente de forma isolada). Um médico que faz um aborto poderia estar a ganhar dinheiro de outra forma, logo, terá de cobrar o suficiente para compensar não se ter dedicado a outra actividade.

Repito que não há falácia maior do que pensar "Ah, esse malandro, a lucrar com a miséria das mulheres!". Quem quer que use este argumento, tem de abrir no dia dia seguinte uma clínica gratuita (mesmo que clandestina) de realização de aborto e/ou contribuir financeiramente para subsidiar as mulheres que a elas recorrem. Há muitos a quem lhes custa aceitar que uma troca livre é uma troca livre, e que uma troca livre necessariamente beneficia as duas partes nela envolvidas.

A avaliação dos "custos de oportunidade" para o médico que se dedica a fazer abortos e não outra coisa tem, naturalmente, de ter em conta os custos (equipamento, renda do andar, etc). Esta componente do lucro é inteiramente legítima. Mais, ela é, em geral (isto é, não só no negócio do aborto, mas na economia em geral), um sinal de que a liberdade económica existe. Só um opositor da liberdade de troca entre agentes é que pode criticar esta componente do lucro. Contudo, mesmo que a critique, terá de admitir que o facto de a troca ser relacionada com o aborto não traz nada de novo a essa crítica. Logo, não há autoridade adicional para dizer que o negócio no aborto é mais ilegítimo que outros.(Repito: falo só desta componente).

1.2) O prémio de risco por penalização diz respeito apenas à remuneração adicional que é exigida pelo serviço de forma a compensar as penas possíveis em que se pode incorrer e a probabilidade de cada uma delas ocorrer. Esta componente do lucro é inteiramente legítima. É natural e expectável que alguém que se ofereça para fornecer um serviço a outrém, com isso incorrendo em penas de prisão e outras (que, recordo, já aconteceram), exija uma compensação por isso. Estranho seria se não o fizesse.

2.1) As rendas por informação imperfeita existem porque a mulher não tem, como acontece no paradigma de uma economia competitiva, informação perfeita sobre o mercado em questão. Concretamente, no caso do aborto clandestino, não tem informação perfeita sobre a oferta de serviços e sobre o seu preço. Isto é inteiramente expectável, dado que o mercado não é, por definição, transparente. Pode haver muito "boca-a-boca", mas a clandestinidade implicará sempre que estamos muito longe do paradigma de um mercado com informação perfeita.

Logo - estando afastados desse paradigma (que é mesmo uma ferramente "teórica" que serve de benchmark, ajudando a compreender o quão "imperfeitamente competitivas" são as situações reais, que realmente importam analisar) -, temos, inevitavelmente, a presenção de rendas económicas derivadas da existência de informação imperfeita, a tal remuneração acima do "lucro normal", o que seria obtido numa situação de concorrência perfeita.

Ou seja, quem oferece o serviço de abortamento cobrará preços mais altos do que aconteceria num mercado competitivo. (Volto a repetir que quem não aceite - seja positiva, seja normativamente - esta "inevitabilidade", tem de, em coerência, contribuir com fundos para ajudar as mulheres que recorrem à clandestinidade para fazer um aborto). Para quem aceite os princípios que subjazem a uma economia de mercado, verá esta componente como inteiramente legítima.

No máximo, poder-se-ia argumentar que certas situaçóes de excessivo poder de mercado não são aceitáveis e que os consumidores devem ser protegidos. Um exemplo: a questão do arredondamento dos juros na banca, onde a nova legislação tornou tudo mais transparente - fazendo diminuir o grau de infomração imperfeita existente. Mas o que importa é perceber que mesmo que defendamos esse ponto, estas rendas não seriam imputáveis ao facto de estarmos perante um negócio de abortamento, mas apenas ao facto de haver informação imperfeita.

Ora, tendo em conta que o aborto, com a actual lei, só poderá ser clandestino, é inevitável que exista informação imperfeita, dado que não pode haver publicidade em larga escala, etc. Em suma, mesmo os que achem que estas rendas não são legítimas em geral, isto é, em todo e qualquer mercado, terão de concordar que não só é inevitável que estas rendas existam com o aborto clandestino - por ser clandestino -, como a essência do negócio do aborto não faz aumentar essas rendas.

2.2) As rendas por "aproveitamento" da situação de fragilidade da mulher dizem respeito ao que resulta do "poder de negociação" acrescido que quem faz o abortamento tem - ou melhor, se permite ter, se tal decidir - sobre a mulher, dado o estado de necessidade e urgência em que se encontra e ainda, dada a clandestinidade, quer a falta de alternativas quer a falta de informação sobre elas (comparo tudo isto com a situação de um mercado competitivo, em que não é possível auferir "rendas económicos", mas apenas "lucros normais", isto é, a remuneração normal dos factores empregues).

Embora a mulher só faça um aborto se quiser (razão pela qual será possível encontrar um argumento contrário, ainda que não muito humano), parece-me razoavelmente óbvio que esta componente do lucro seja considerada menos pacífica quanto à sua legitimidade. Para não me alongar mais, considerarei esta parcela do lucro como não legítima.

2.3) As rendas relativas a outros factores incluem todos os outros tipos de poder de mercado não referidos anteriormente. Basicamente, advém, para além de alguma possível diferenciação dos serviços oferecidos, sobretudo do poder de mercado no sentido mais imediato da palavra: o poder que advém do facto de não haver suficientes prestadores deste serviço para que o preço baixe para o nível que vigoraria caso existisse concorrência perfeita. É outra parcela inteiramente legítima do lucro.

Em suma, apenas uma parcela do lucro global de quem providencie abortos pode ser considerada ilegítima: a que resulta de uma "exploração" da situação de fragilidade da mulher.

Note-se que, no que se refere à componente 2.2), uso a palavra "exploração" num sentido positivo e não normativo. A avaliação normativa que faço - de sugerir que tal exploração é ilegítima - resulta do contexto. Até porque falo de exploração da "situação" em si e não da mulher. Ou seja, não uso a palavra no sentido marxista de "exploração do trabalhador" ou, de forma mais genérica, "exploração de vítimas", mas, factualmente, no sentido de haver um aproveitamento de uma oportunidade (sem carga normativa, repito) em que um dos lados tem, quase sempre, um poder de negociação diminuído pela urgência do acto e pela falta de alternativas. O juízo normativo vem depois.

Isto tem consequências no plano económico (que ficam para um outro post) e também da argumentação em torno da penalização tout court dos auxiliares do aborto, como referi aqui e como também já tinha referido o Adolfo Mesquita Nunes. Não sei qual será o peso da componente 2.2) no lucro total (médio) de quem providencia o aborto. Creio que não será o principal. Apesar do número pequeno de penas até agora ocorridas, elas são reais e quem se aventura por um negócio ilegal tem de ter cuidado e pensar duas vezes. Penso que a componente primordial dos lucros será o prémio de risco, que está associado à sanção legal e também (não o disse antes, digo agora) à sanção social (quem é que gostará de publicitar que se dedica a fazer abortos clandestinos?). A componente 2.1) também não pode ser desprezada, uma vez que a clandestinidade promove preços mais altos pelo simples facto de não haver publicitação e transparência na avaliação dos serviços oferecidos. Também a componente 2.3) é relevante. Se o negócio fosse lícito, haveria mais concorrência. Não o sendo, é inevitável que os preços sejam mais elevados do que os que vigorariam numa situação mais concorrencial.

O que está em causa é que a ideia generalista que quem providencia o aborto é um "bandido", um "explorador", é profundamente cega e/ou demagógica. Só uma parcela poderá ser considerada ilegítima e mesmo essa, pelo menos numa perspectiva libertária, poderia ser facilmente criticada, já que nada obriga - efectivamente - a mulher a recorrer a alguém para fazer um aborto. Por muito grande que seja o seu estado de necessidade, será sempre uma escolha livre. Esta seria, creio, uma possível crítica libertária à ilegitimidade desta componente do lucro no negócio do aborto, que não necessariamente uma crítica liberal (ou seja, mais ampla, de todo o espectro liberal e não apenas do espectro liberal-libertário).

Concluindo: não há razão para aceitar a penalização dos auxiliares do aborto quando a mulher não é penalizada, porque, por um lado, eles são meros autores materiais, enquanto a mulher é autora moral; e porque o lucro é todo - ou quase todo - ele legítimo. Sei que isto custa a ler a muita gente, mas é a mais pura das verdades. E se isto não é convincente, pensem lá bem a tragédia que seria se houvesse menos gente a providenciar o aborto: i) a oferta descia; ii) os preços subiam; iii) a mulher teria mais dificuldade em encontrar um sítio para abortar atempadamente; iv) muitas nunca conseguiriam fazer o aborto desejado e acabareiam por trazer ao mundo inocentes sem as condições (pessoais, familiares, afectivas, sociais, financeiras, etc) que gostariam de ter - porventura aquilo que provavelmente mais as inclinaria a fazer o aborto.

Também não é dizer que quem providencia o aborto é um "salvador". Bastará dizer, sem ser cínico nem ser incrédulo, que cada um reage a incentivos. Há oportunidades de mercado? Aproveitam-se. Há mulheres que querem abortar e não encontram sítio legal onde o fazer? Há que ponderar abrir um negócio de abortamento, ter em conta a penalização associada a essa actividade, perceber qual o preço que se poderia cobrar e, finalmente, decidir ou não se isso é melhor do que a actividade que actualmente se exerce. Já disse: quem achar isto estranho, dê dinheiro - em escala proporcional ao seu grau de indignação - para acabar com a "usura" do aborto clandestino.


As conclusões para os dois primeiros pontos propostos:

1. O lucro no negócio do aborto clandestino, tirando uma parcela pouco relevante, é inteiramente legítimo.

2. Não faz sentido penalizar quem auxilia o aborto quando a mulher não é penalizada.

O terceiro ponto será abordado num próximo post.

PS: um ponto que poderá ser levantado: quanto ao facto de este negócio não pagar impostos, isso não pode ser considerado como ilegítimo em si mesmo, uma vez que não existe a possibilidade de "fuga aos impostos". Sendo ilícito, o negócio do aborto clandestino não é passível de tal acusação.

A incongruência da despenalização assimétrica

[...] Ou seja, e penso ser esta, por exemplo, a posição de Marcelo Rebelo de Sousa, muita gente estaria disposta a despenalizar o acto de abortamento por parte da mulher mas já não tolera que possa existir em Portugal o negócio ou a actividade relacionada com o abortamento.

Percebo a ideia, que alivia e muito a consciência. E penso que a ideia está devidamente ancorada numa separação conceptual e jurídica de duas realidades: a mulher que, em estado de necessidade, recorre ao abortamento (não penalizada) e o agente provocador do mesmo, que consciente e deliberadamente presta à mulher o serviço do abortamento (deveria ser penalizado).

Ora, ainda que essa separação seja legítima e válida, temo que fosse contraditada pela realidade dos factos e nada resolvesse, tendo sobretudo em conta que à excepção do abortamento auto-induzido, o abortamento carece sempre de alguém que o provoque no corpo da grávida. [...]
Vale a pena ler o texto todo de Adolfo Mesquita Nunes, cujos temas se cruzam com o que referi anteriormente.

Outros Sins (2)

[...] Eis-nos em pleno surrealismo: uns recusam a aplicação da lei por a considerarem injusta; outros exibem o seu tornear para lhe reclamar a sobrevivência, aos gritos de “não são presas, não são presas!” Como se a ausência de mãos nas grades libertasse alguém da obscena devassa infligida por todo o processo…[...] Em termos práticos, a que tem conduzido a lei vigente, provada que está a ausência de qualquer efeito dissuasor? À liberalização do aborto clandestino, com os resultados que todos conhecemos, ao nível da saúde física e psicológica das mulheres; quem frequentou ou frequenta os Serviços de Urgência conhece-os bem, por mais que diminuam as situações de vão de escada. O que somos chamados a decidir é se pessoas que tomaram uma decisão de foro íntimo, na esmagadora maioria dos casos dilacerante, têm ou não o direito de enfrentar um período difícil com ajuda profissional e sem a palavra crime e suas consequências à espreita. A escolha com que nos deparamos é esta e só esta.

Júlio Machado Vaz, a partir daqui. (Bolds meus).

Falácias do Não (4)

"O que está em causa neste referendo (e no de 1998) não é a despenalização, mas simplesmente a liberalização do aborto até às dez semanas, eliminando-se crianças saudáveis por exclusiva decisão da mãe, e sendo as mulheres penalizadas se fizerem aborto às dez semanas e um dia."

"Estamos todos de acordo com a despenalização. Tirando uma ou outra excepção, não queremos ver as mulheres devassadas na privacidade, nem na barra dos tribunais."

Matilde Sousa Franco

Permitam-me que não comente a falácia aqui subjacente. Convido apenas a que reparem como, implicitamente, encontramos a sugestão de que uma "criança saudável" e uma "criança não saudável" - o que quer que a senhora entenda por isso - não merecem o mesmo tratamento. E ela fala em "crianças", não em (por exemplo) "projectos de crianças". E a hipótese de ter sido uma pequena distração perde força se tivermos em conta o contexto em que foram ditas aquelas palavras. Palavras que só podem ter sido muito bem medidas.

Outros Sins (1)

1. O aborto não é uma questão religiosa. Há quem queira transformá-lo assim, por conveniência de convicções ou má fé de argumentário. Mas, como católico, sinto que alguns sectores da Igreja me querem encurralar num espaço ideológico uniformizado e acrítico, sem perceber que esta Igreja deve antes confiar nos seus fiéis e que deve levar a sério a adultez moral de todas e todos. [...]

3. O facto de defender a despenalização do aborto (é isso que está em causa) não significa que seja contra a vida. A interrupção de uma gravidez não é desejável por ninguém e o recurso ao aborto não pode ser encarado como algo simplesmente leviano e fácil. Cada caso é um caso, mas por todos os casos perpassa um conflito interior enorme. Pensar o contrário é não confiar nas pessoas, é achar que o aborto vai explodir como se banalizasse um novo método contraceptivo.


Miguel Marujo, no Sim no Referendo. (Bolds meus).

PS: a propósito do tema, ver este e depois este posts.

Thursday 25 January 2007

Despenalização da autoria moral, mas não da autoria material? Não faz sentido.

Embora este argumento não pretenda ser definitivo, porque a questão é complexa, julgo difícil aceitar que não se penalize a mulher, que é sem dúvida autora moral do acto abortivo - e, eventualmente, também material -, enquanto que quem é meramente autor material desse mesmo acto - quem "fornece o serviço", ajuda nos contactos, etc - é penalizado.

Será aceitável que o autor material seja mais penalizado que o autor moral de um acto? Não creio. (Isto não é apenas perguntar se a actual lei consagra esse princípio, é sobretudo perguntar se esse princípio é justo ou não - isto para alguns juristas-legalistas que têm uma tendência vigorosa para tomar a lei que existe como sendo possuidora de uma sacralidade [ética] incontestável, quase sobre-humana, o que é redutor e perigoso, para não dizer verdadeiramente absurdo).

Aquilo que gostava que algumas, perdão, imensas vozes do Não no referendo - aquelas que, numa estratégia incontestavelmente muito inteligente, insistem em afirmar que são pela despenalização da mulher (sem nada ter feito por isso quando o PSD-CDS/PP estavam no poder, como muito bem afirma, com especial autoridade, Vasco Rato) - respondessem é se concordam com a despenalização de quem quer que esteja envolvido no acto abortivo, ou seja, dos seus autores materias e eventuais cúmplices (quem dá os contactos, etc).

Há um argumento comum em alguma esquerda, mas que também é visível nalguma direita e em apoiantes do Não, mesmo libertários em termos económicos, que condena o lucro obtido no negócio do aborto clandestino. Como tentarei argumentar amanhã, apenas uma parcela pequena desse lucro pode ser, pelo menos duma perspectiva liberal (que é a minha), considerado ilegítimo. A ideia global e generalista de que o todo o lucro é ilegítimo é falaciosa para qualquer espírito minimamente liberal.

Leia-se ainda o que escreveu Pedro Marques Lopes.

Sucintamente

Em resposta ao desafio do Carlos Guimarães Pinto:

1. Concorda com a realização do referendo e a formulação da pergunta?
Não (mas é o que há); não (mas é o que há).

2. Qual a pena que pensa que deveria ser aplicada a mulheres que abortem com 3 meses de gravidez? E 6 meses?
Nenhuma pena; nem aos 6 meses.

3
. A partir de que período da gravidez deverá a mulher ser punida criminalmente pelo aborto?
A partir de nenhum período. Não deve haver qualquer sanção penal para a mulher. Neste ponto, concordo totalmente com o que defende Marcelo Rebelo de Sousa.

4.
Considera que o aborto deverá ser realizado e suportado pelo Serviço Nacional de Saúde?
Quem faz um aborto deve pagar por isso, na totalidade, mesmo que tal venha a ser permitido em hospitais públicos. Até às 10 semanas, o aborto é quase sempre feito através de um comprimido que se toma em casa, não havendo necessidade de internamento, pelo que não haverá um impacto significativo na prestação de outros serviços de saúde, caso ele venha a ser incluído no SNS*.

5.
Tem algum tipo de oposição moral à prática do aborto?
Pessoal, sim, alguma; sobre terceiros, nenhuma. O aborto é um dilema moral que se coloca sempre no plano pessoal e íntimo. Julgo, contudo, que o Estado não deve ter nada com isso, ou seja, julgo que a questão não deve ser posta num plano legal. Aqui, concordo com Henrique Raposo e Pedro Arroja. Relativamente a terceiros, não me sinto no direito de julgar quem quer que tenha feito um aborto. Já no plano pessoal, o dilema estará sempre presente, logo, haverá necessariamente um lado de oposição. Mas isso é do foro íntimo.

6. Caso o SIM vença e o referendo não seja vinculativo, aceitaria a realização de um novo referendo nos próximos 10 anos?
Obviamente que sim. E voltaria a dar o meu contributo para que o aborto se mantivesse como um dilema moral do foro íntimo, que não da lei.

7. Caso o NÃO vença e o referendo não seja vinculativo, defenderia a aprovação da lei no parlamento?
Não. Esperaria, todavia, que os defensores do Não que são contra a penalização, por uma vez, agissem de forma coerente e consequente com a posição que têm demonstrado publicamente, a favor da despenalização.

*o fim da ilicitude do aborto permitirá que ele seja feito: i) mais atempadamente; ii) com melhor aconselhamento e acompanhamento psicológico e social para a mulher; iii) com menores riscos para a saúde física e psíquica da mulher; iv) a um custo financeiro (de mercado) mais baixo; iv) com a ajuda de fundos privados, de caridade, que hoje são ilícitos reunir. Assim, ao contrário do que muitos pensam, não é verdade que o fim da ilicitude do aborto só mude algo "na prática", sobretudo para as mulheres em maior estado de necessidade, se houver também uma intervenção e comparticipação do Estado.

O fim da ilicitude do aborto até às 10 semanas, em estabelecimento autorizado, garante, por si só, uma melhoria efectiva de condições para as mulheres que resolvem fazer um aborto. O Sim tem de pegar mais neste argumento e, porventura, considerar que é útil que o Governo se comprometa a não comparticipar o aborto, pelo menos durante a actual legislatura.

A Lógica do meu Sim (1)

1. Há um dilema moral na questão do aborto, devido aos dois valores em conflito: o de uma vida humana, que é, no mínimo, uma pessoa "em potência"; e o da liberdade da mulher. Julgo que o Estado deve estar fora do assunto;

2. Dado o Estado ter hoje uma palavra a dizer sobre o assunto, inclino-me, naturalmente - e em abstracto - para que essa situação seja reparada;

3. Ora, essa situação só pode ser reparada com medidas concretas. No caso, o que temos na mesa é um referendo. Concordermos ou não que a questão deva ir a referendo, concordemos ou não que ela é a melhor pergunta que poderíamos ter feito, é o que temos na mesa. Há que avaliar não a situação actual face à situação (que temos por) ideal, mas a situação actual face à situação possível. Claro que na avaliação da situação possível podemos, perfeitamente, ter em conta o quão longe ela está da situação ideal. Não me parece é que possamos ter apenas isso em conta. Não podemos ignorar o que está em cima da mesa e dizer que só por não ser a situação ideal, voto Não ou opto pela Abstenção. Isso implicaria, das duas (pelo menos) uma: i) uma Falácia de Falso Dilema ("ou sim ou sopas"); ou achar que desde que não estejamos na situação ideal, tudo o que seja proposto me é indiferente, independentemente do quão longe isso esteja da situação ideal;

4. Para mim, a pergunta e o que a ela subjaz está longe do ideal e há coisas com que discordo com o que pode vir a acontecer se o Sim ganhar - e não é demais lembrar que há muita coisa em aberto. Mas, tudo bem medido, considero que todas essas coisas que não colhem o meu favor, quando comparadas com a necessidade - devido a uma questão de princípio - de retirada do Estado neste assunto, se tornam perfeitamente ultrapassáveis.

Logo, só posso votar Sim. Logicamente, voto Sim.

A seu tempo explorarei cada um destes quatro pontos.

Lógico

Assimetrias e injustiças

Mesmo que aquilo que Pacheco Pereira hoje escreve no Público não seja, obviamente, um argumento definitivo para não votar Não, será difícil entender quem tenha um pouco de humanidade e não aceite a parte que aqui transcrevo (o que não quer dizer que isso esgote o tema; há o feto, obviamente, mas há também a mulher. É um argumento parcial, não definitivo).

O que me desagrada nesta campanha - feita mais para os homens do que para as mulheres - é que ela passa ao lado, mais do que isso, desrespeita, ignora, menospreza, o carácter essencialmente existencial, vivido, do problema do aborto. É por isso que o aborto é mais uma questão das mulheres, como é a maternidade, e não é totalmente extensível e compreensível aos homens. Este é um dos casos que esquecemos muitas vezes, quando achamos que a igualdade é algo de adquirido sob todos os aspectos, e que tem a ver apenas com a sociedade, a economia, a cultura e o direito. Não, pelo contrário, há desigualdades, "diferenças" no dizer politicamente correcto, estruturais entre os seres humanos, uma das mais fundamentais é a que a maternidade introduz entre homens e mulheres. E para as mulheres, que, quase todas, ou abortaram ou pensaram alguma vez em abortar, ou usam métodos conceptivos que à luz estrita do fundamentalismo são abortivos, o aborto de que estamos a falar neste referendo não é uma questão de opinião, argumento, razão, política, dogmática, mesmo fé e religião. Também é, mas não só. É uma questão de si mesmas consigo mesmas, íntima, própria, muitas vezes dolorosa e nalguns casos dramática. Não é matéria sobre que falem, se gabem, argumentem ou esgrimam como glória ou mesmo como testemunho. Não é delas que vem esta estridência, nem é por elas que vêm os absurdos do telemóvel, do pinto, do ovo, do Saddam Hussein, do coraçãozinho. É mais provável que sintam tudo isso mais como insultos do que como argumentos que lhes suscitem a atenção. No seu silêncio votarão ou abster-se-ão, mas é por elas, por si, pelo seu corpo, pelos seus filhos, pelo seu destino, pela sua vergonha, pela sua dor, pela sua miséria, pelas suas dificuldades económicas, pela sua vida, pelos seus erros, pelas suas virtudes.

É verdade que, como em todas coisas, há irresponsabilidades, há mulheres irresponsáveis nos abortos que fazem, como nos filhos que fazem, mas duvido muito que sejam a regra. A regra é que aborto é sofrimento, físico e psicológico, e é sobre esse sofrimento que vamos votar. Eu vou votar sim, mas admito que, exactamente com a mesma consciência do mesmo problema, haverá quem vote não. Mas os moderados, estranha palavra rara no meio desta estridência, não podem deixar de recusar este folclore que infelizmente nalguns casos torna príncipes da Igreja iguaizinhos ao Bloco de Esquerda e vice-versa. Se percebêssemos esse silêncio interior da maternidade, mesmo quando dilacerada pelo aborto, seríamos menos arrogantes, menos estridentes, menos obscenos nas campanhas.

Duas incoerências

Por Pedro Marques Lopes e Henrique Raposo.

Estratégia e Mercado Alvo

Numa noite eleitoral, contam-se votos para ambos os lados. Independentemente de outras motivações salutares, importa não perder isto de vista. Uma estratégia inteligente do Sim tem de pensar em termos claros se segmentação de mercado. Tem de tentar captar mais apoio ao Sim. Isto naturalmente, tem que ver com a posição final - Sim, Não, Abstenção - daqueles que ainda não estão totalmente decididos. Nessa segmentação, importa considerar:

i) os tipos existentes de indecisos;

ii) a percentagem de cada tipo de indeciso;

iii) o valor inerente a cada tipo de indeciso.

E é preciso ter isto tudo em conta porque o tempo é escasso e porque é preciso, como dizem os consultores de 2 em 2 minutos, "enfoque". Não se pode ser eficaz disparando para todo o lado. O "valor" inerente a cada indeciso, em termos da vitória do Sim, tem que ver sobretudo com a "probabilidade" de captar esse indeciso para o lado do Sim. Há que ponderar este asserção do valor de cada tipo de indeciso com a percentagem que julgamos existir no todo dos indecisos, para ver onde é que vale mais apostar.

Não é inteligente dedicar recursos a tentar convencer os que votam Não convictamente. Seria o mesmo que tentar aumentar as vendas de carne de porco junto do público vegetariano.

Também não é inteligente insistir em argumentos que atraem sobretudo aos que votam convictamente Sim. Seria tão errado, estrategicamente, como lançar uma campanha de marketing junto de certos clientes da Caixa Geral de Depósitos que todos sabem serão sempre clientes da Caixa Geral de Depósitos.

Importa, ainda, em tudo isto não perder os actuais "clientes", quer para o rival Não, quer, com muito maior probabilidade, para o rival Abstenção. É preciso moderação no que se diz e é preciso não cantar vitória.

É, portanto, imperativo ser "enfocado", apostando em atrair novos "clientes" e tendo em conta a atractividade de cada segmento, que inclui ponderar o tamanho desse segmento com a atractividade por cilente. Em meu entender, existem três tipos básicos de indecisos que devemos tentar atrair para o Sim:

1) Os que estão renitentes em votar Sim por acharem que está em causa uma "liberalização" até âs 10 semanas - e não uma legalização, que é o que está na mesa -, argumentando, à la Marcelo Rebelo de Sousa, que o feto e o direito à vida ficam desconsiderados. Isto não é verdade, como já expliquei aqui;

2) Os que estão renitentes em votar Sim por serem - como eu - contra a "subsidiação" do aborto. É preciso explicar que não é isto que está essencialmente em causa, que isso pode ão acontecer e que, mesmo que aconteça, pode ser revogado em ser por recurso ao referendo. Acresce que o direito negativo me parece, de todo o modo, merecedor de prevalecer perante este. Abordarei este ponto mais à frente;

3) Os que estariam inclinados a votar Sim, mas têm problemas de consciência devido ao direito à vida, argumentando, consequentemente, que podemos estar perante um retrocesso civilizacional. Este tipo de indecisos tem parecenças com os de Tipo 1, mas merecem ser diferenciados, porque o que está em caus não é tanto o facto de a mulher (como diz Marcelo) poder vir a fazer um aborto "sem qualquer justificação", mas pelo feto em si. Ou seja, o ponto principal é mesmo o direito à vida, mais do que a comparação entre este direito e o direito da mulher a abortar.

Aos indecisos de Tipo 3, a pergunta que se deve fazer (e que farei mais tarde) é a seguinte: já reparou que a Europa toda vive nesse "atraso civilizacional" de forma consciente e consentida? Será que não haverá algo de exagerado na forma como enquadramos o direito à vida, pelo menos até um período - 10 semanas - que é consensualmente tido como um período "razoável" para poder ultrapassar o dilema moral em causa? Mais, não é estranho que, sendo havendo tão grave rertocesso civilizacional, se faça tão pouco para alterar o que acontece por essa Europa fora? É que uma vida é uma vida, aqui como em Espanha.

Quanto a ii) e iii): estou demasiado longe de Portugal para "sentir o pulso" à coisa, mas julgo que será muito fácil de convencer os indecisos de Tipo 1 de que a legalização permite que existam períodos de reflexão, aconselhamento, etc. Isto deve ser frisado até à exaustão, sobretudo perante o que Marcelo tem vindo a dizer. Os indecisos de Tipo 2 serão muitos, também, em parte pela proliferação dos cartazes que referem os "impostos". E é bom lembrar que estamos em tempo de crise. Convencer os indecisos de Tipo 2 é marginalmente mais custoso que convencer os de Tipo 1. É preciso levar isso em conta na afectação de "tempo de argumentação". Os indecisos de Tipo 3 são os mais difíceis de convencer e o argumento da "Europa civilizada" pode fazer alienar alguns actuais apoiantes do Sim, embora seja importante. Cuidado redobrado, é o que se pede.

A reforçar a ideia de que é preciso "enfoque", temos ainda que, no momento de decidir, uma pessoa terá em conta, no máximo, dois ou três argumentos. Lembrar-se-á do que Marcelo tem dito na televisão, mais uma ou outra coisa, e decidirá. Isto, na hipótse de não votar puramente com base num "estado de alma". (Mas mesmo esse subconsciente, essa decisão automática, aparentemente não racional, pode ser "trabalhada" insistindo, calmamente, em dois ou três argumentos, que não mais).

Ontem avancei 7 argumentos de apoio ao Sim. É altura de concentrar esforços no que realmente pode fazer a diferença.

O vale tudo

Deve ser já claro para todos que Marcelo Rebelo de Sousa abraçou a táctica do vale tudo. É difícil dar-lhe a resposta merecida, proporcional (e falo em termos gerais, não falo de mim), não só pela projecção ímpar que ele (merecidamente) tem, mas também porque os argumentos que ele usa são de tal modo falaciosos que deixariam qualquer interlocutor inteligente à beira de um ataque de nervos. E os nervos jogam sempre a favor do Não, é bom nunca esquecer isso. Farei, portanto, o possível e o impossível para não comentar certas atrocidades argumentativas que, com aquela espantosa bonomia que todos lhe reconhecemos, Marcelo vem produzindo. Certas, mas não todas.

Voltámos à falácia das touradas?

Henrique, és demasiado inteligente para eu poder achar que tu acreditas mesmo nisso que escreves. Nas touradas ninguém, nem os que tu mencionas, argumenta que é "o direito à vida do bicho" que está em causa - o touro terá de morrer um dia, seja às mãos da natureza ou do homem. O que sempre está em causa - e podemos dar uma resposta positiva ou negativa a isso, mas não podemos negar que é isso que está em causa para quem quer que seja que se oponha às touradas - é saber se, antes de uma morte que é inevitável, nós, homens, animais racionais, que vivemos em sociedade, etc, etc, temos ou não o direito a infligir sofrimento e, possivelmente, a torturar um animal, em troca do (inegável e até - porque a natureza humana é o que é - "compreensível") prazer que isso dá a algumas pessoas. Devemos ou não permitir-nos isso?

Como notavelmente escreveu Pacheco Pereira há alguns anos, no Público, temos de nos perguntar se, enquanto civilização, é aceitável promovermos o uso de um animal, que lhe inflija dor e sofrimento - incluindo a eventual tortura, isto é, uma dor que não é apenas momentânea, mas que se arrasta, conscientemente, durante certo período de tempo - para nosso próprio prazer. E não se confunda a necessidade básica de alimentação com a necessidade secundária - importante e legítima - de recreação. Sei que, como outros, tens alguma queda para a clubite, que é, deixa-me que te diga, a única coisa que me permite em parte compreender que te atires a essa argumentação inacreditável. Mas bolas, Henrique, há limites. Não quero dispersar a minha atenção neste blogue, mas há coisas que vindas de pessoas que prezamos custam muito a ignorar. Vê lá isso. Abraço,

Wednesday 24 January 2007

Clubite e agendas

A todos aqueles que só conseguem ver o comportamento e as escolhas dos outros à sua própria imagem e forma de estar no mundo, um pedido: leiam o Pedro Lomba.

Falácias do Não (3)


"Eu voto não também porque a vitória do Sim levará a uma explosão nas listas de espera dos hospitais."


Nota importante: naturalmente, não estou a dizer que este é o argumento principal do Não, nem sequer que é um argumento dos mais importantes. Mas "grão a grão enche a galinha o papo". Continuarei aqui a ilustrar as falácias existentes em vários argumentos utilizados pelo Não, cada um deles necessariamente considerado de forma isolada, isto é, na (suposta) contribuição que faz para o (suposto) reforço da posição do Não. Só assim se faz uma discussão séria. Misturar vários argumentos num bolo de apelo à emoção, que não à razão, não é comigo. Assim - e porque na argumentação lógica o todo é sempre resultado da soma das partes -, a cada falácia exposta, mais fragilizado ficará, inevitavelmente, o todo argumentativo do Não. Com a perserverança que se exige, essa desmontagem, "peça a peça", continuará a ser esse o objectivo da série Falácias do Não.

PS1: A nota acima escrita foi escrita de forma a esclarecer os leitores de que é possível e desejável que se debata este tema questão a questão. Julguei que isso estaria implícito, mas o comentário de Duarte Meira incentivou-me a esclarecê-lo.

PS2: Quanto ao comentário de Fernando Gouveia: hesitei em referir que este argumento (parcial) do Sim é também uma Falácia de Dispersão, mais concretamente, de Derrapagem (ou Bola de Neve), ao extrair consequências lógicas inaceitáveis de uma premissa - como muito bem refere. Para não sobrecarregar o post (original...) e por achar que, mais do que dar um passo ilógico em si mesmo, o mais grave é inventar um facto que não tem qualquer sentido, optei por destacar apenas esta falácia.

Créditos devidos

Ao Adolfo Mesquita Nunes, pela inspiração parcial que deu ao ponto 4. do meu artigo no Diário Económico, com este seu excelente texto.

7 x Sim

O meu artigo de hoje no Diário Económico, arquivado aqui.

O que está em causa não é, em primeira análise, saber se o aborto é “certo” ou “errado”, mas se o Estado deve punir uma mulher que aborte.

1. Marques Mendes diz que o aborto é uma questão de consciência – todavia, vota não. Como é que se pode concordar com a manutenção de uma lei que pune uma mulher que aborte, com uma pena de até 3 anos de prisão, defendendo ao mesmo tempo ser o aborto uma questão de consciência?

2. Quem acha que o Estado não tem nada que ver com este assunto só pode, em coerência, votar sim, porque só uma alteração da actual lei permite atingir isso. A abstenção, aqui, será sempre uma demissão de um dever de cidadania – como ter uma opinião forte sobre um assunto desta importância e decidir não votar?

3. O mesmo se aplica aos que “embirram” com o referendo e tencionam abster-se, por não reconhecerem autoridade ao Estado neste assunto. Ora, se o referendo é a única forma viável de fazer com que o Estado perca essa autoridade, que actualmente tem, não será esse objectivo suficientemente importante para compensar o custo de participar num referendo do qual se discorda formalmente?

A actual lei é ineficaz, com todos os
contornos da “Lei seca”: uma lei que ninguém
cumpre, que ninguém quer ver cumprida,
que faz florescer a clandestinidade.

4. Há ainda quem seja favorável à despenalização do aborto e, contudo, tencione abster-se ou votar não por ser contra o subsídio ao aborto. Recordo que o que vai a votos no dia 11/2 tem que ver com a atribuição de um direito negativo (“de” não haver penalização) e não de um direito positivo (“a” uma comparticipação). O primeiro tem precedência sobre o segundo: não só formalmente (o segundo não pode ser equacionado sem o primeiro), mas sobretudo substantivamente – não podemos pôr no mesmo plano uma sanção penal e uma questão de impostos. Acresce lembrar que o direito negativo só pode ser alterado por referendo, enquanto que um direito positivo pode ser revisto por qualquer governo. Como compreender, neste caso, a falta de convicção em votar sim, dando margem a que a actual lei se venha a manter por outra dezena de anos?

5. É possível condenar eticamente o aborto e votar sim sem qualquer contradição (ex. Laborinho Lúcio): o que está em causa não é, em primeira análise, saber se o aborto é “certo” ou “errado”, mas se o Estado deve punir uma mulher que aborte.

6. Quem defende, simultaneamente, a criminalização e a despenalização do aborto não é apenas paternalista – aceitando sermões do Estado sobre o assunto –, como se torna patrocinador do aborto clandestino, ao pugnar pela ilegalidade do aborto, fazendo com que, na prática, tudo se resuma a uma questão económica: quem pode, aborta lá fora; quem não pode, comete o crime na pátria. E consegue Marcelo dormir as suas 5 horas defendendo esta posição?

7. A actual lei é ineficaz, com todos os contornos da “Lei seca”: uma lei que ninguém cumpre, que ninguém quer ver cumprida, que faz florescer a clandestinidade, dando azo às desigualdades e aos abusos que conhecemos. É aceitável um estado de direito manter uma lei que ninguém cumpre e que ninguém quer ver aplicada?

Os X-men

Falácias do Não (2)

Há muito quem use o argumento de que, caso ganhe o Sim, a mulher vai poder passar a fazer um aborto sem qualquer justificação. Assim mesmo: sem qualquer justificação. Será que alguém, na plena posse das suas faculdades mentais e de alguma boa fé, pode achar que uma mulher não faz um aborto a não ser que tenha justificações suficientes para o fazer? Marcelo Rebelo de Sousa sugeriu isto na RTP e repetiu-o em vídeo, que vale a pena ver. João César das Neves acompanha-o na ideia de que fazer um aborto é coisa "fácil", tão fácil que caso o Sim ganhe "o aborto será tão normal como um telemóvel". Haverá, diz o economista, uma proliferação em massa do aborto - deduzimos que por ser uma coisa agradável e apetecível.

Bom. (Respirar fundo.) Caso o Sim vença, será legalizado o aborto realizado até às 10 semanas, a pedido da mulher, em estabelecimento autorizado. "A legislação que se seguirá a essa eventual vitória do Sim poderá exigir a frequência por parte da mulher de sessões de aconselhamento ou a obrigação de respeitar um período de reflexão de uma ou duas semanas" - escreve o leitor José Barros. Não é necessariamente verdade, portanto, que se o Sim ganhar a mulher poderá fazer um aborto sem qualquer justificação. Podem ser exigidos alguns requisitos para que o aborto seja legal, isto é, de acordo com a lei, de acordo com o que vier a ser legislado caso vença o Sim.

"Legalização significa que a mulher não terá realmente de ter um motivo forte para fazer um aborto. Mas só quem esteja de má fé é que acredita que alguma mulher aborta porque lhe apetece" - escreve, novamente, José Barros. Para evitar juízos de carácter sobre quem acha que uma mulher decide fazer um aborto "na desportiva", socorro-me do que pode estar por detrás disto: uma Falácia Indutiva, mais concretamente, uma falácia por Generalização Precipitada.

Eu já vi na televisão e já li e não ponho por um segundo em causa que existam algumas mulheres para quem o aborto é uma decisão relativamente fácil de tomar, porventura descontraída, até encarada como método aceitável de último recurso ou mesmo como método anti-concepcional ("se engravidar, no worries, é só pedir mais um para a marquesa três") . Mas serão quê, 0.1%, 0.2%, 0.5%? Alguém de boa fé e com alguma vivência humana (que inclua mulheres, de preferência imensas, que quanto maior a amostra, melhor) achará que a grande maioria delas, para não dizer a quase totalidade delas passará, para lá das sequelas físicas, por um dilema psicológico tremendo por ter consciência que acaba com o que é, no mínimo, um projecto de vida que se encontra dentro dela?

Qualquer pessoa que tenha contactado directa ou indirectamente com um caso de aborto saberá do que estou a falar. Não é apelar a "neo-realismos", "vãos de escada" e coisas que tais, acreditem. É da natureza humana. É impossível uma pessoa não se questionar sobre o acto último que é fazer um aborto antes de o fazer. Como disse, não duvido por um segundo que existam algumas excepções, de uma ou outra mulher que faça um aborto "na descontra". Mas uma andorinha não faz a Primavera. (Ou, se preferirem, um corvo não faz um Inverno).

Pondo de parte a má fé e a falta de contacto com a realidade destas situações, só posso concluir reiterando que a falácia indutiva, por generalização precipitada, que consiste em sugerir, com base em casos perfeitamente fora de série e escassíssimos, que as mulheres se decidem a fazer um aborto sem terem primeiro encontrado justificações suficientemente fortes que permitam tomar essa decisão dolorosa e irreversível é algo assinalável, verdadeiramente notável.

Face aos que dizem e repetem, tanta vez com sorrisos de cândida empatia no rosto, Sem qualquer justificação, não!, convém andar prevenido. Com calmantes no bolso.

Tuesday 23 January 2007

Grato

A todos os que linkaram e venham a linkar este blogue.

Falácias do Não (1)

Abordarei, nesta série que agora se inicia, o que entendo serem algumas falácias importantes do Não. Fá-lo-ei de forma construtiva. Sem intenção de denegrir ou destruir quem quer que seja. Sem o fazer por puro prazer intelectual. Antes, tentando alargar o apoio ao Sim. Começo com uma ideia que Marcelo Rebelo de Sousa referiu Domingo passado na RTP. Mais coisa menos coisa, algo deste género:

Muito bem, o aborto fica despenalizado até às 10 semanas, mas depois, como é? A mulher que aborta às 10 semanas e 1 dia vai para a cadeia? (...) E eu até seria favorável à despenalização do aborto às 10, às 12, às 20 semanas, aos 6 e aos 8 meses! Mas despenalizando o aborto feito às 10 semanas e penalizando o aborto feito às 10 semanas e um dia, não. Assim, não.

A falácia é, claramente, uma Falácia de Dispersão, mais concretamente, um Falso Dilema. Subjacente ao que Marcelo diz, está a ideia, falaciosa, de que "ou sim ou sopas". Ou bem que se despenaliza tudo, ou se fica (leia-se, ou é melhor ficar) com a lei actual. Isto é falacioso porque existem soluções intermédias, desde logo a que está em discussão. Podem não ser as ideais, mas a ideia do "tudo ou nada" dificilmene será consistente com os valores que Marcelo afirma defender. Vou tentar explicar porquê.

A única forma honesta de justificar uma opinião isolada num debate onde a questão colocada é claramente dual (Sim ou Não) é comparar o que resulta da aprovação da proposta que está em discussão com o que resulta da sua rejeição - e com todas as implicações que cada um desses cenários tem, como escrevi aqui. Não será pior, mais preocupante, mais condenável, para quem se mostre sensibilizado com a possibilidade de condenação das mulheres, um cenário em que sejam ou possam ser condenadas 100 mulheres, relativamente a um cenário em que sejam ou possam ser condenadas apenas 10?

Pessoalmente, não vejo como responder negativamente à pergunta que acabo de colocar. Como Marcelo Rebelo de Sousa, também defendo a despenalização do aborto em qualquer altura e, exactamente por defender isso, ou melhor, pelo que obviamente está por detrás disso, é que prefiro uma despenalização até às 10 semanas a uma despenalização até às 5 semanas. Não é o ideal, o que vai a votos? Pois não. Mas é o possível - hoje, em Fevereiro de 2007. O argumento de Marcelo Rebelo de Sousa só poderia ser consistente se ele achasse equivalente haver uma, dez, cem condenações.

O ponto é simples, portanto. A ideia, por si só, de que "se uma mulher que aborte até às 10 semanas não está sujeita a condenação e uma mulher que aborte às 10 semanas e 1 dia está, então, mais vale manter a actual lei" é muito dificíl de compatibilizar com a preocupação humanista e individualista demonstrada. Em quatro palavras: something's got to give. E se acho que Marcelo Rebelo de Sousa comete uma falácia - de achar que ele apresenta ideias incoerentes com base na premissa (subjacentemente) anunciada - , é porque rejeito liminarmente a hipótese de que a premissa verdadeira possa ser diferente da (subjacentemente) anunciada - a de que a condenação de 10 mulheres afectaria a sua consciência no mesmo exacto grau que a condenação de 10.000 mulheres. Não consigo acreditar nisso.