Este ponto é importante, muito importante, mais ainda tendo em conta o que disse ontem Marcelo Rebelo de Sousa, na RTP. É que, caso o Sim vença, fica muita coisa em aberto. Caso vença o Não, tudo fica na mesma. Note-se que não estou a dizer que é argumento a favor do Sim dizer que é melhor apenas porque deixa mais coisas em aberto. Mas é inteligente, logo, desejável, que quem escreve e fala pelo Sim sublinhe que se o Sim vencer isso não implica duas coisas que afugentam (e percebe-se inteiramente porquê) muitos potenciais apoiantes do Sim:
1) Uma possível desconsideração do valor da vida humana;
2) O uso de recursos alheios para comparticipação num acto privado, do qual o agente é inevitavelmente responsabilizável ("accountable for"), ainda que não necessariamente responsável ("responsible for") - um tema a que procurarei voltar mais tarde.
Fico-me, neste post, pelo primeiro ponto. Como sugere o padre e professor de Filosofia Anselmo Borges, é não só possível como desejável que, tendo o Estado a possibilidade e, de facto, dada a forma como a pergunta do referenco é colocada, a obrigatoriedade de legislar sobre o assunto, que o faça com sensatez e moderação, tendo em conta os valores em conflito nesta questão complicada. O Estado terá de legislar sobre os estabelecimentos onde se poderão fazer cessações voluntárias de gravidez, até às 10 semanas. Não obstante a pergunta incluir a expressão "a pedido da mulher", não é impossível que o Estado exija certas condições processuais para a realização de um aborto nesses mesmos estabelecimentos.
Em suma, e ao contrário do que se depreende das palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, não é uma conclusão lógica afirmar que tudo será "completamente livre". Não. O que haverá, caso o Sim ganhe, é a legalização do aborto até às 10 semanas, em estabelecimento autorizado. A diferença que vai da legalização (neste período) à liberalização é a exacta diferença que permite ao Estado dar um sinal real e efectivo de não indiferença perante os valores em causa no dilema moral em questão.
O Sim deve apostar neste argumento:
Fica muito em aberto se o Sim ganhar.
Como disse antes, não se trata de um argumento baseado numa "comparação de flexibilidade" com o Não. O argumento não se baseia no Sim deixar mais coisas em aberto que o Não. O argumento diz apenas que uma vitória do Sim deixa muito em aberto e que esse muito permite, nomeadamente, ter em conta algumas opiniões divergentes, compreensíveis e aceitáveis sobre o assunto, desde que não irresoluvelmente conflituantes com a ideia geral prevalecente - a que for consagrada nas urnas.
Há muito que se pode fazer depois e apenas se o Sim ganhar, para, incorporando ideias e valores da parcela da sociedade que não votou Sim, procurar diminuir a fractura social e a radicalização de posições. Não é a conversa mole do "diálogo" e do "consenso". É perceber que é errado, de um ponto de vista normativo (e também de um ponto de vista estratégico, mas isso aqui é secundário), desistir de fazer o possível para limitar divergências e divisões que, sendo insanáveis, poderão coexisitir num ambiente de pluralidade e tolerância, onde não se respire a ideia absurda da defesa absoluta de determinados valores.
É possível um consenso mais alargado no apoio ao Sim.
É imperativo, portanto, que os apoiantes do Sim não desperdicem as oportunidades que têm de engrandecer o apoio ao Sim. É que se no campo do Não há muita heterodoxia, acredito que no Sim ela também não será pouca. Cabe aos apoiantes do Sim aumentar o leque de perspectivas que, com maiores ou menores reservas, possibilitam a quem as tem votar - ou não -, se possível em consciência, de um modo que seja, na margem, favorável ao Sim.
7 comments:
Tiago, pensamentos soltos:
A diferença que vai da legalização [...] à liberalização é a exacta diferença que permite ao Estado dar um sinal real e efectivo de não indiferença perante os valores em causa no dilema moral em questão.
Legalizado o Aborto já está, e o Estado já dá um sinal real e efectivo de não indiferença perante os valores em causa no dilema moral em questão. O Estado já formata a sociedade segundo um determinado um modelo moral. Proíbe— a não ser em casos particulares, e segundo uma lógica necessariamente retorcida.
A partir do momento que o Estado o faz, empenha-se em não diminuir a fractura social e a radicalização de posições, toma uma posição através de uma lei-decreto exclusiva.
O objectivo de integração de ideias, que devia ser democrático, só é possível pela máxima descentralização— uma verdadeira liberalização, enquanto des-estatização.
Don't ask, don't tell, laissez-faire, live and let live.
Assim não acontece porque as pessoas entendem ser seu direito indignar-se moralmente, e levar o assunto para a liça política. É fundamental o direito à indignação; acontece que o direito a não ser indignado não existe, sobretudo em matérias íntimas como esta.
A resposta menos fracturante e radicalizante à pergunta do referendo é obviamente o "sim". O "não" é democrático nos meios referendários, mas não o é nos princípios.
Tiago,
Ora seja bem vindo. Um das principais contradições -inconsistências talvez seja um termo mais adequado- é o gap existente entre a utilização de termos como "genocidio", "assassinio", "terrorismo" e a ausência de consequências práticas que eles deveriam implicar. Eu sei que tu tens algum -muito- pudor em falar da vida privada de terceiros, mas cá vai. O caso Paulo Teixeira Pinto/Paula Teixeira da Cruz: como é possível que um ferrenho do não coabite com alguém que vote sim (uma apoiante do "genocídio")? Se o que estivesse em causa neste referendo fosse a tal questão civilizacional nos termos em que ela é colocada o "sereno espirito democrático" do Não não faz sentido. As palavras têm lógicas e gramáticas práticas, coisa que alguns defensores do Não parecem ignorar.
Abraços,
Joao
um ferrenho do não coabite com alguém que vote sim (uma apoiante do "genocídio")?
As pessoas reconhecem a "jurisdição moral" de quem lhes é próximo, e dessa tensão gerem as suas relações. São frágeis esses equilíbrios entre repulsa e empatia moral, que compõem o que se designa "coesão social".
Ao distanciar e desindividualizar o outro, o processo de centralismo democrático acaba por desinibir a censura moral, e aceitável a censura política...
"concordar com o que eu concordo que concordemos"
António,
Mas não achas que o mui tolerante "concordamos em discordar" não se aplica quando utilizamos termos como "genocida" e "homicida"? Eu não concordo em discordar com Nazis, nem com pedófilos. Ora, os termos muitas vezes usados para descrever quem defende o Sim, não se distinguem assim tanto de extremos que repudiamos (pegando em armas para os combater, se necessário...). Ou se mudam os adjectivos para algo mais brando (será que a tal "vida humana" como valor absoluto permite outros), ou se é consistente na prática.
Um abraço,
João Galamba
[ Tinha deixado aqui uma resposta grande ao Galamba que parece que não apareceu ] :P
João,
Para mim, o "concordar em discordar" é um pressuposto da discussão, o que me obriga a reconhecer ao outro o direito a uma opinião, a uma jurisdição e privacidade moral. [obviamente, mesmo que o debate seja duro]
Quando não há reciprocidade, ou quando a resposta é do género "és Hitler", e o assunto é político, não pode haver dúvidas que o adversário procura constituir-se um invasor da minha propriedade moral...
António: obrigas-me a abrir uma excepção à regra a que me impûs, apenas para esclarecer, sobretudo a outros leitores, que não apaguei qualquer comentário teu. De resto, não apaguei qualquer comentário até ao momento.
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