Monday, 22 January 2007

Argumentos fundamentais para o Sim (1)

Impõe-se ser sensível àquele "por opção da mulher" tal como consta na pergunta do referendo, pois há aí o perigo de precipitações e arbitrariedades. Por isso, no caso de o sim" ganhar, espera-se e exige-se do Estado que dê um sinal de estar a favor da vida.

Este ponto é importante, muito importante, mais ainda tendo em conta o que disse ontem Marcelo Rebelo de Sousa, na RTP. É que, caso o Sim vença, fica muita coisa em aberto. Caso vença o Não, tudo fica na mesma. Note-se que não estou a dizer que é argumento a favor do Sim dizer que é melhor apenas porque deixa mais coisas em aberto. Mas é inteligente, logo, desejável, que quem escreve e fala pelo Sim sublinhe que se o Sim vencer isso não implica duas coisas que afugentam (e percebe-se inteiramente porquê) muitos potenciais apoiantes do Sim:

1) Uma possível desconsideração do valor da vida humana;

2) O uso de recursos alheios para comparticipação num acto privado, do qual o agente é inevitavelmente responsabilizável ("accountable for"), ainda que não necessariamente responsável ("responsible for") - um tema a que procurarei voltar mais tarde.

Fico-me, neste post, pelo primeiro ponto. Como sugere o padre e professor de Filosofia Anselmo Borges, é não só possível como desejável que, tendo o Estado a possibilidade e, de facto, dada a forma como a pergunta do referenco é colocada, a obrigatoriedade de legislar sobre o assunto, que o faça com sensatez e moderação, tendo em conta os valores em conflito nesta questão complicada. O Estado terá de legislar sobre os estabelecimentos onde se poderão fazer cessações voluntárias de gravidez, até às 10 semanas. Não obstante a pergunta incluir a expressão "a pedido da mulher", não é impossível que o Estado exija certas condições processuais para a realização de um aborto nesses mesmos estabelecimentos.

Em suma, e ao contrário do que se depreende das palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, não é uma conclusão lógica afirmar que tudo será "completamente livre". Não. O que haverá, caso o Sim ganhe, é a legalização do aborto até às 10 semanas, em estabelecimento autorizado. A diferença que vai da legalização (neste período) à liberalização é a exacta diferença que permite ao Estado dar um sinal real e efectivo de não indiferença perante os valores em causa no dilema moral em questão.

O Sim deve apostar neste argumento:

Fica muito em aberto se o Sim ganhar.

Como disse antes, não se trata de um argumento baseado numa "comparação de flexibilidade" com o Não. O argumento não se baseia no Sim deixar mais coisas em aberto que o Não. O argumento diz apenas que uma vitória do Sim deixa muito em aberto e que esse muito permite, nomeadamente, ter em conta algumas opiniões divergentes, compreensíveis e aceitáveis sobre o assunto, desde que não irresoluvelmente conflituantes com a ideia geral prevalecente - a que for consagrada nas urnas.

Há muito que se pode fazer depois e apenas se o Sim ganhar, para, incorporando ideias e valores da parcela da sociedade que não votou Sim, procurar diminuir a fractura social e a radicalização de posições. Não é a conversa mole do "diálogo" e do "consenso". É perceber que é errado, de um ponto de vista normativo (e também de um ponto de vista estratégico, mas isso aqui é secundário), desistir de fazer o possível para limitar divergências e divisões que, sendo insanáveis, poderão coexisitir num ambiente de pluralidade e tolerância, onde não se respire a ideia absurda da defesa absoluta de determinados valores.

É possível um consenso mais alargado no apoio ao Sim.

É imperativo, portanto, que os apoiantes do Sim não desperdicem as oportunidades que têm de engrandecer o apoio ao Sim. É que se no campo do Não há muita heterodoxia, acredito que no Sim ela também não será pouca. Cabe aos apoiantes do Sim aumentar o leque de perspectivas que, com maiores ou menores reservas, possibilitam a quem as tem votar - ou não -, se possível em consciência, de um modo que seja, na margem, favorável ao Sim.

7 comments:

AA said...

Tiago, pensamentos soltos:

A diferença que vai da legalização [...] à liberalização é a exacta diferença que permite ao Estado dar um sinal real e efectivo de não indiferença perante os valores em causa no dilema moral em questão.

Legalizado o Aborto já está, e o Estado já dá um sinal real e efectivo de não indiferença perante os valores em causa no dilema moral em questão. O Estado já formata a sociedade segundo um determinado um modelo moral. Proíbe— a não ser em casos particulares, e segundo uma lógica necessariamente retorcida.

A partir do momento que o Estado o faz, empenha-se em não diminuir a fractura social e a radicalização de posições, toma uma posição através de uma lei-decreto exclusiva.

O objectivo de integração de ideias, que devia ser democrático, só é possível pela máxima descentralização— uma verdadeira liberalização, enquanto des-estatização.

Don't ask, don't tell, laissez-faire, live and let live.

Assim não acontece porque as pessoas entendem ser seu direito indignar-se moralmente, e levar o assunto para a liça política. É fundamental o direito à indignação; acontece que o direito a não ser indignado não existe, sobretudo em matérias íntimas como esta.

A resposta menos fracturante e radicalizante à pergunta do referendo é obviamente o "sim". O "não" é democrático nos meios referendários, mas não o é nos princípios.

Joao Galamba said...

Tiago,

Ora seja bem vindo. Um das principais contradições -inconsistências talvez seja um termo mais adequado- é o gap existente entre a utilização de termos como "genocidio", "assassinio", "terrorismo" e a ausência de consequências práticas que eles deveriam implicar. Eu sei que tu tens algum -muito- pudor em falar da vida privada de terceiros, mas cá vai. O caso Paulo Teixeira Pinto/Paula Teixeira da Cruz: como é possível que um ferrenho do não coabite com alguém que vote sim (uma apoiante do "genocídio")? Se o que estivesse em causa neste referendo fosse a tal questão civilizacional nos termos em que ela é colocada o "sereno espirito democrático" do Não não faz sentido. As palavras têm lógicas e gramáticas práticas, coisa que alguns defensores do Não parecem ignorar.

Abraços,

Joao

AA said...

um ferrenho do não coabite com alguém que vote sim (uma apoiante do "genocídio")?

As pessoas reconhecem a "jurisdição moral" de quem lhes é próximo, e dessa tensão gerem as suas relações. São frágeis esses equilíbrios entre repulsa e empatia moral, que compõem o que se designa "coesão social".

Ao distanciar e desindividualizar o outro, o processo de centralismo democrático acaba por desinibir a censura moral, e aceitável a censura política...

"concordar com o que eu concordo que concordemos"

Joao Galamba said...

António,

Mas não achas que o mui tolerante "concordamos em discordar" não se aplica quando utilizamos termos como "genocida" e "homicida"? Eu não concordo em discordar com Nazis, nem com pedófilos. Ora, os termos muitas vezes usados para descrever quem defende o Sim, não se distinguem assim tanto de extremos que repudiamos (pegando em armas para os combater, se necessário...). Ou se mudam os adjectivos para algo mais brando (será que a tal "vida humana" como valor absoluto permite outros), ou se é consistente na prática.

Um abraço,

João Galamba

AA said...

[ Tinha deixado aqui uma resposta grande ao Galamba que parece que não apareceu ] :P

AA said...

João,

Para mim, o "concordar em discordar" é um pressuposto da discussão, o que me obriga a reconhecer ao outro o direito a uma opinião, a uma jurisdição e privacidade moral. [obviamente, mesmo que o debate seja duro]

Quando não há reciprocidade, ou quando a resposta é do género "és Hitler", e o assunto é político, não pode haver dúvidas que o adversário procura constituir-se um invasor da minha propriedade moral...

Tiago Mendes said...

António: obrigas-me a abrir uma excepção à regra a que me impûs, apenas para esclarecer, sobretudo a outros leitores, que não apaguei qualquer comentário teu. De resto, não apaguei qualquer comentário até ao momento.