Monday 5 February 2007

Do voto cristão no dia 11-02-2007

Acreditem que não pretendo provocar ninguém, nem digo isto com qualquer leviandade. Estudei 9 anos num colégio católico e, apesar de ter frequentes e acesas discussões com alguns Irmãos Maristas - mais sobre Moral do que sobre outros aspectos da Religião -, sempre consegui distinguir os Irmãos que pensavam sobretudo pela própria cabeça (como o Irmão Félix) dos que aparentavem ser meros "fiscais" do que quer que fosse que entendiam como correcto. Acredito que um coração aberto identifica com grande facilidade outro coração aberto.

Querem um exemplo fora do tema do aborto? Johnny Cash, na sua vida toda e, de forma particularmente nítica e tocante no seu mítico concerto ao vivo At St. Quentin. Mais do que as músicas, é a forma como ele dialoga, aceita (recebe?) e verdadeiramente ama os prisioneiros que o escutam, com uma alegria imensa que contagia qualquer um - os músicos, os prisioneiros, até os guardas, e nós que o podemos testemunhar até sempre. É a forma como ele pratica o amor cristão, a forma como ele acredita e se dedica, com devoção, à redenção terrena dos prisioneiros e (através disso) dele próprio, redenção essa que ele considerará como parcial - por ser terrena -, mas ainda assim importante.

Isto para dizer que é minha convicção que hoje, em 2007, e perante o que está na mesa, o voto cristão (na minha asserção, subjectiva, do que é ser-se cristão - necessariamente em consciência, mais do que por mero cumprimento do que é hoje a posição, e porque falamos de Portugal, da Igreja Católica) - deveria ser no Sim. Porque está na mesa um Sim moderado, que apenas abre uma excepção até às 10 semanas. Porque não há nenhuma "liberalização" do aborto, nem nenhuma desconsideração absoluta ou chocante pela vida intra-uterina.

Agnóstico, não baptizado, não católico, nem sequer cristão, mas ainda assim com afinidades com algumas das coisas que associamos a Cristo - sobretudo a forma, imperativa, de amar, receber e ajudar o outro, mais do que do conteúdo de certos (outros) princípios morais, certamente nada que diga respeito à moral sexual (e não cabe aqui explicar porque não sou cristão, obviamente) -, vejo a essência da mensagem de Cristo (se me permitirem ter uma leitura...), em toda a sua plenitude, esplendor e alegria de amar nos escritos, por exemplo, de Anselmo Borges e de Frei Bento Domingues. Porque neles vemos um um coração aberto ao outro. E verdade, compaixão, fraternidade.

O cristão, para mim (repito, se me permitem ter uma leitura...), é essencialmente alguém que nunca desiste de compreender o outro; de o trazer, após um comportamento censurável, de volta ao que é desejável, mas sempre com uma mão amiga, não com pedras ou chicotes. Um cristão terá sempre os braços abertos para uma mulher que passou pelo dilema e sofrimento de fazer um aborto. Um cristão saberá sempre que uma mulher faz um aborto cheia de dúvidas, cheia de medo, cheia de lágrimas. Um cristão, ao inquirir uma mulher sobre a razão de ter feito um aborto, poderia dizer "Porque pecaste, irmã? Porque tiveste de pecar? O que se passa na tua vida, o que se passa na tua alma, para o teres feito?"; nas nunca a apelidaria de "assassina". Nunca, mas nunca, sugeriria que ela, criatura divina como o homem, responsável como o homem, teria tomado uma decisão tão pesada de ânimo leve, "sem qualquer justificação".


Se Cristo votasse no referendo de dia 11, acredito que optaria pela compreensão e pela moderação - votando Sim ao que está na mesa. Votando por um Sim que é incontornavelmente ponderado. E julgo que não apreciaria muito do que se tem visto por aí, de incompreensão, de guerra suja, de desconsideração pela próxima. Não lhes atiraria pedras, mas não deixaria de perguntar: "Porque atiras pedras, irmão? Porque tratas as tuas irmãs dessa forma? Tens ódio dentro de ti?". E certamente que os tentaria trazer à razão. O que em linguagem cristã quer dizer que os tentaria trazer de volta ao amor puro e incondicional.

Nota: só para não haver qualquer mal entendido: não estou a mostrar qualquer cartão amarelo ou vermelho a alguém que se considere cristão e vote Não. Falo apenas da minha leitura da essência da mensagem de Cristo, aplicada à situação em concreto do referendo do próximo Domingo. Passo com muito gosto (e apenas por ter nisso alguma autoridade) cartões vermelhos sobre lógica argumentativa em qualquer debate, não tenho pretensões nenhumas de oferecer uma interpretação definitiva do que é ser cristão. Isso seria ridículo. Dou apenas uma opinião.

1 comment:

José Ferreira Marques said...

Um texto de excepcional clareza sobre um assunto complexo que não agrada aos que fizeram uma campanha para confundir os simples.
Parabéns!