Saturday 3 February 2007

Uma pergunta directa para uma resposta honesta

Rui Tavares, hoje, no Público

A pergunta a que vamos responder no referendo do próximo dia 11 é compreensível para qualquer pessoa que saiba ler e isso é algo que nenhum contorcionismo político ou gramatical poderá mudar. "Concorda com a despenalização..." A despenalização é, evidentemente, a palavra-chave desta pergunta. É talvez surpreendente, mas o referendo do próximo dia 11 não é acerca de quem gosta mais de bebés, tal como não é acerca de quem mais respeita o sofrimento das mulheres. A pergunta do referendo também não é "dê, por obséquio, o seu palpite acerca de quando é que a alma entra no corpo dos seres humanos", matéria que sempre intrigou os teólogos. Não é acerca de quem gosta de fazer abortos e quem gosta de dar crianças para orfanatos. Por isso e acima de tudo, devo confessar que sofro de cada vez que ouço na televisão jornalistas falarem dos dois campos em debate como o "sim ao aborto" e o "não ao aborto".

Numa pergunta que começa com aquele "concorda com a despenalização", os dois votos possíveis não se dividem em pró-aborto e antiaborto, e muito menos pró-escolha e pró-vida. Os que respondem "sim" à pergunta são "pró-despenalização". Os que respondem "não" são "pró-penalização" (ou "antidespenalização", o que é forçosamente ser a favor da penalização). Tudo o mais é responder com alhos a uma pergunta sobre bugalhos, e qualquer chefe de redacção deveria saber isso. "... da interrupção voluntária da gravidez...". Até agora sabemos que a pergunta é sobre despenalizar, mas ainda não falámos de quê. Há quem tenha problemas com a expressão "interrupção voluntária da gravidez" por considerá-la um eufemismo, mas acontece que é a fórmula correcta para designar um aborto não-natural, não-espontâneo.

Mesmo assim, isto não atrapalha o debate: toda a gente parte do princípio de que IVG é aquilo que, em linguagem corrente, genérica e imprecisa, chamamos "aborto". Os problemas surgem quando nos aproximamos da segunda parte da pergunta. "... se realizada, por opção da mulher". No mundo real, o que quer dizer esta parte da pergunta? Quer dizer que a concordância com a despenalização da IVG deve ser dada (apenas e só) no pressuposto de que ela seria realizada por opção da mulher. Basicamente, significa que se uma mulher for forçada a abortar por uma terceira pessoa, esse aborto é crime e essa tal terceira pessoa será punida. Quer dizer que, se fulano apanhar uma mulher grávida, a anestesiar e lhe interromper a gravidez, não poderá eximir-se respondendo que "o aborto foi despenalizado", precisamente porque graças à segunda parte da pergunta o aborto só é despenalizado se for por opção da mulher. No mundo do "não", porém, esta parte da pergunta é a que causa mais engulhos. Percebe-se porquê. "Por opção da mulher"? A mulher, grávida de poucas semanas, a tomar uma decisão? Sozinha? Deve haver aqui qualquer coisa de errado.

Quando se lhes retorque que não poderia ser por opção de outra pessoa, e se lhes pergunta quem queriam então que fosse, a informação não é computada. Algures, de alguma forma, teria de haver alguém mais habilitado para tomar a decisão. O pai? O médico? O Estado? Então e se qualquer deles achasse que a mulher deveria abortar, contra a vontade desta? Pois é. É precisamente por isso que aquele inquietante "por opção da mulher" ali está. "...nas primeiras dez semanas...". Aborto livre, grita o "não"! Aqui está a prova, o aborto é livre até às dez semanas! Ora, meus caros amigos, o limite de dez semanas significa precisamente que o aborto não é livre... Ou o facto de só se poder andar até 50 quilómetros por hora dentro de uma localidade significa "velocidade livre"? Não faz muito sentido, não é verdade?

Enquanto digerem esta pergunta, os adeptos do "não" mudam de estratégia. Então o que acontece às 11 semanas? E o que acontece, meus amigos, quando se anda em excesso de velocidade? É-se penalizado, e a penalização vai-se agravando quanto maior for o excesso de velocidade. Isso quer dizer que, nos pressupostos da pergunta, o aborto não é livre. Não era esse o problema? "... em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?" Esta parte final é tão clara que vou poupar palavras. Um "estabelecimento de saúde" quer dizer que não é um estabelecimento desportivo, e "legalmente autorizado" quer dizer que não é ilegal, ou que não é legalmente desautorizado, se tal coisa existisse.

Mas vale a pena notar o que "legalmente autorizado" não quer dizer. Não quer obrigatoriamente dizer do Estado, mas também não quer dizer privado, particular, ou o que seja. Quer dizer apenas que é num estabelecimento de saúde conforme com os procedimentos legais e que foi expressamente autorizado para a operação em causa. Não há melhor barómetro da má-fé neste debate do que dizer que estamos em face de duas perguntas diferentes, ou até duas perguntas de sinal contrário (uma legítima, a outra capciosa), tentando fazer passar a ideia de que a "segunda pergunta" de alguma forma perverte a primeira, rompendo com ela. Não há aqui primeira nem segunda pergunta: há apenas uma pergunta, que se refere a determinadas condições, condições essas que qualificam e restringem o âmbito da questão. Dizer o contrário disto não é só má-fé, é principalmente má-lógica: se a segunda metade da pergunta está contida na primeira, ela não pode ser mais aberta do que a anterior. Como é natural e faz sentido, cada passo da pergunta a fecha um pouco.

Dizer que é "despenalização da IVG" significa que não é despenalização de qualquer outra coisa, dizer que é "por opção da mulher" significa que não é por opção de qualquer outra pessoa, dizer que é até "às dez semanas" significa que não é sem qualquer limite, dizer que é "em estabelecimento de saúde" significa que não é no meio da rua, e dizer que a pergunta se refere a um estabelecimento de saúde "legalmente autorizado" significa que não pode ser no dentista, ou na farmácia, ou no ginásio. Tudo o resto é apenas uma desculpa para não se assumir as responsabilidades do voto. Pessoalmente, não vejo nesta pergunta nada que não me agrade, e vejo muita coisa que me agrada.

É uma pergunta de compromisso, cautelosa, que prevê os limites mais importantes, deixando a definição das políticas (de saúde, de planeamento familiar, judicial, etc.) para os actores e momentos certos. Pode responder-se sim ou não, e eu responderei "sim". Sou pela despenalização, naquelas condições, como outros são pela penalização mesmo naquelas condições. O que não se pode é invalidar a pergunta, degradando a sua lógica. Trata-se de uma pergunta directa. Como tal, pede apenas uma resposta honesta.

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