Wednesday 7 February 2007

Sim à despenalização

Maria Barroso Soares, no Público

Não tenho querido meter-me nesta discussão acerca do referendo que vai ser posto à votação no próximo dia 11. O barulho tem sido tal, a especulação e a interpretação do problema que se põem têm sido tão agressivas que têm atingido tons que, mais que convencer, podem assustar, confundir e levar à abstenção. Aliás Pacheco Pereira, num excelente artigo sobre o assunto, saído no PÚBLICO em 25 do mês passado, diz em determinada altura a esse propósito: "Talvez todos estes excessos possam servir marginalmente para mobilizar para o voto, embora duvide muito da sua eficácia, penso até que favorecem mais a abstenção do que a mobilização." Porque, tal como está a ser feita por alguns, está confundindo grande parte das pessoas, não só as mais simples, menos informadas, menos capazes de perceber o que verdadeiramente se passa, como muitas outras. Por isso Pacheco Pereira diz referindo-se às mulheres - que considera e muito bem como os actores principais desta questão, embora não os únicos - que "não é delas que vem esta estridência, nem é por elas que vêm os absurdos do telemóvel, do pinto, do ovo, do Saddam Hussein, do coraçãozinho. É muito provável que sintam tudo isso mais como insultos do que como argumentos que lhes suscitem a atenção. No seu silêncio abster-se-ão, mas é por elas, por si, pelo seu corpo, pelos seus filhos, pelo seu destino, pela sua vergonha, pela sua dor, pela sua miséria, pelas suas dificuldades económicas, pela sua vida, pelos seus erros, pelas suas virtudes".

Num artigo também saído no PÚBLICO, no domingo 28, uma personalidade muito considerada da Igreja fazia uma reflexão muito profunda, muito séria, e até muito corajosa, como costumam ser os seus magníficos artigos dos domingos. Em dado momento dizia, referindo-se ao referendo do próximo dia 11: "Não se trata de saber quem é e quem não é pelo aborto, neste prazo e nestas condições, mas quem é ou não pela penalização da mulher que aborta neste prazo e nestas condições." E citava um pouco mais adiante a opinião do muito considerado professor e padre Anselmo Borges, quando diz, entre outras considerações: "De qualquer modo não se pode chamar homicídio sem mais à interrupção da gravidez levada a cabo nesse período (isto é, antes da décima semana)."

E, homem da Igreja e cidadão consciente e exemplar que é, indignava-se Frei Bento Domingues com a ameaça de excomunhão aos católicos que alguns fazem e com a comparação do aborto ao terrorismo. Est modus in rebus, valha-me Deus!

Sabemos que a lei tal como está concebida, com a perseguição e criminalização das mulheres, as leva ao aborto clandestino, porque as mais diversas e dramáticas razões as fazem não levar a gravidez ao fim, na impossibilidade de dar à luz um filho que, a viver, não poderia gozar de um mínimo de dignidade e felicidade indispensáveis a qualquer ser humano.

O que importa - tal como diz a dra. Paula Teixeira da Cruz - é dar à mulher a possibilidade de escolha do que deve ou não deve fazer. Ninguém é - no dizer desta ilustre advogada e de acordo com a nossa própria visão do importante problema que se discute e cuja resolução está dependente de todos nós - apologista do aborto; o que somos é pela liberdade de escolha que deve ser concedida às mulheres segundo a sua própria consciência. Não, evidentemente, pela degradante situação a que tem estado sujeita, segundo a lei que vigora. O sofrimento e a angústia já são suficientes para quem dramaticamente recorre à interrupção voluntária da gravidez.

Segundo dados que nos chegam de outros países da Europa, a não penalização da mulher, de acordo com a lei desses países, tem levado a decrescer seriamente o numero de abortos lá efectuados.

Claro que apenas a modificação da lei não é suficiente. Será necessário criar condições às mulheres que as façam desejar que os seus filhos nasçam e evitará muitos dos dramas de que temos notícia. Aliás, este caso da penalização não permite que a interrupção da gravidez, desejada por algumas mulheres, possa ser feita em condições de higiene e segurança física e psíquica, de modo a evitar que aquelas que, desesperadamente, têm que recorrer a essa interrupção deixem de preencher as listas das que a fazem em condições terríveis e sucumbam por esse motivo nas mais degradantes condições.

Também a educação sexual é um dos factores que terá que ser considerado seriamente nesta questão. Uma educação cuidada, séria e muito exigente - dada por pessoas competentes e moralmente apetrechadas - será um outro dos elementos a ter em conta.

É preciso também criar instâncias ou agentes de aconselhamento e de apoio às mulheres antes da tomada de decisão. Também será preciso que os governos tomem as medidas necessárias para responder às necessidades e às angústias antes dessa tomada de decisão. E temos de constatar, infelizmente para nós e muito especialmente para essas mulheres, que nada de justo e sério foi feito nesse sentido, nos anos que decorreram entre o outro referendo e agora. A única solução encontrada foi o vexame dos julgamentos e da prisão.

É bom lembrar e sublinhar que alguns dos argumentos que os que querem impedir a correcção da lei actual invocam são rebatidos por grandes e insuspeitas figuras de ciência. Por exemplo, entre outros, o professor Mário de Sousa, director de Serviço do Laboratório de Biologia Celular Abel Salazar, que diz: "Às dez semanas não bate um coração, não é um órgão, é um conjunto de células." E acrescenta, com toda a autoridade que o seu saber científico lhe dá e a sua consciência de cidadão muito respeitado lhe confere: "O que está em causa é se as mulheres que interromperam uma gravidez devem ser julgadas e presas, ou se devem ser protegidas." E acrescenta, muito justa e claramente: "Em primeiro lugar está a pessoa que está à minha frente, que é a mulher, não é um apêndice."

Num livro saído há pouco em Portugal e em Espanha, a opinião de Federico Maior, também ele um distinto cientista, coincide com a deste investigador português, quando diz que o óvulo humano, se estiver fecundado, é um zigoto, embora alguns radicais - no seu entender - digam que o zigoto já é um ser humano. Mas isso, diz, "será uma proposta filosófica mas não é ciência".Também o professor Alexandre Quintanilha se pronuncia sobre o mesmo assunto, defendendo a posição dos que são pelo "sim", justificando-a do ponto de vista científico, provando que o óvulo fecundado não é ainda um ser humano e fazendo um apelo à tolerância que deve estar presente na discussão, reflexão e debates sobre este sério problema.São todos eles grandes cientistas de renome internacional e, simultaneamente, cidadãos conscientes e muito considerados. Por isso há que ouvi-los!

Não nos podemos, pois, levar apenas por impulsos ou sentimentos suscitados e explorados por cidadãos não tolerantes que extremam, acaloradamente, as suas posições.Também o sr. cardeal-patriarca, figura não só da Igreja, como da cultura e cidadão exemplar cuja influência e prestígio atravessam grandemente as nossas fronteiras, foi muito claro e justo na sua primeira aparição, aquando do começo da discussão deste problema: "Não se trata de um problema da Igreja, mas sim da consciência individual de cada cidadão."

Há também uma coisa que me preocupa e até indigna: por que é que os homens ficam ilibados de todas as culpas? Porque é que a lei atinge apenas as mulheres? A mulher sem a participação do homem não pode ficar grávida. Aliás, são os homens, muitas vezes e por diversas circunstâncias, que as levam a praticar o aborto, obrigando muitas delas a praticá-lo contra a sua própria vontade.

É preciso, pois, que todos os cidadãos assumam as suas responsabilidades e não se escondam alguns por detrás dos que são mais vulneráveis e que aparecem como os únicos culpados desta solução última.

Como cidadãos responsáveis que nos prezamos de ser, temos de olhar este problema com a serenidade e a objectividade que ele nos exige, fugindo a qualquer espécie de especulação ou ligeireza.

Ver as mulheres que recorrem, numa situação desesperada, ao aborto, serem julgadas e agredidas com penas de prisão parece-me uma situação humilhante e injusta que têm que suportar com a actual lei. É humilhante, é dramático e inaceitável!Em suma - pelo direito à felicidade das crianças que nascem, e o direito à dignidade das mulheres - eu devo votar pela liberdade que deve ser concedida às mulheres de fazerem, em consciência, a sua escolha.

Digo, com Frei Bento Domingues: "O "sim" à despenalização da interrupção voluntária da gravidez dentro das dez semanas é contra o sofrimento das mulheres redobrado com a sua criminalização. Não pode ser confundido com a apologia da cultura da morte, da cultura do aborto."

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