Friday 2 February 2007

Absolutos vs Gradação

César das Neves tem posição idêntica à oficial da ICAR: a de que o aborto só é admissível quando esteja em risco a vida da mulher. Mesmo este caso é contestado por alguns, o que é "filosoficamente" aceitável (em Malta, nem esta excepção é admitida). Julgo que o Sim devia aproveitar as declarações de César das Neves de forma inteligente. Não com demagogia, tentando fazer crer que todos os Nãos são iguais aos de César das Neves. Não com pretenso moralismo (invertido?), afirmando que todos os Nãos deveriam ser iguais aos de César das Neves. Mas com serenidade, dizendo que se os outros Nãos não são iguais aos de César das Neves, então estamos perante uma questão de quantidade e não de qualidade, ou seja, perante uma questão de grau e não de natureza diferente, ou seja, e ainda, não perante um direito absoluto, que teria sempre um "peso infinito" quando posto em qualquer balança, mas perante um direito relativo, que não pesará necessariamente mais que outros direitos que se ponham no outro prato da balança.

Vasco M. Barreto aborda muito bem este ponto neste seu post.

Se ao embrião o "único direito que lhe assiste é mesmo viver", só sobra uma situação em que o direito da mulher prevalece (e mesmo aqui fazemos uma cedência formal): quando a gravidez lhe traz risco de vida. (...) Duvido que o Eduardo pense como JCN. Mas não consigo perceber - não consigo mesmo e gostaria - como podemos perante este problema manter a ética enxuta, a lógica e a humanidade sem comprometer pelo menos uma das três. As consequências do efeito dominó que o vídeo ilustra são simples.

Ou seja, ou bem que é um direito absoluto, ou então temos de estar disponíveis para fazer uma pesagem honesta do que está em causa. Se é um direito absoluto, é preciso, em coerência, ter a posição de César das Neves. Se não é um direito absoluto - como eu penso que não é -, então:

1) Não podemos, de forma intelectualmente honesta, falar dele como sendo um direito absoluto. Isto acontece regularmente de forma mais ou menos subreptícia, usando expressões como o "direito à vida", a "inviolabilidade da vida", a "sacralidade da vida". Tudo isso, ao absolutizar o "direito a nascer", seria contraditório com a ideia de que há "excepções" admíssiveis, como (muito bem refere VMB) a de mal-formação do feto, violação, aceitação da pílula do dia seguinte, utilização de embriões excedentários para fins terapêuticos.

2) Aceitando que esse direito não é absoluto e que a liberdade da mulher tem "algum" valor, pelo menos em teoria encontraremos um "ponto de indiferença" em que os dois valores são idênticos - ou seja, onde a balança estaria equilibrada. Poderia ser aos 2 milésimos de segundo, aos 2 dias, aos 40 dias, às 10 semanas, às 24 semanas, o que seja. Mas, relembro, o importante é perceber que se não é absoluto, há que por as coisas relevantes nos pratos da balança de forma honesta.

3) Os defensores do Sim - pelo menos alguns - não poderiam ser "diabolizados". Sendo o "peso" a atribuir ao "direito a nascer" uma questão de grau, ao não ter um peso "infinito", as opiniões contrárias, divergindo apenas no grau que esse direito deve ter, face a outros, não podem ser motivo de certos ataques que vemos por aí. Esses ataques são "intelectualmente" legítimos apenas para quem defenda o absolutismo total no "direito a nascer", com todas as implicações que isso tem.

Resta acrescentar que a posição de defesa absoluta e intransigente do "direito a nascer" desde a concepção enfrenta uma questão muito séria e não apenas teórica, que já trouxe aqui, mas que não é demais repetir: a realidade e as nossas acções face a ela.

Como é que assistimos, de forma apesar de tudo impávida e serena, à mortandade que grassa por essa Europa fora, de forma legal? Quantas centenas de milhares de embriões e fetos vão para o "caixote do lixo" sem que nada, ou quase nada seja feito a nível diplomático, da sociedade civil, por essa Europa fora? Não é um embrião português igualmente digno a um inglês?

defendi atrás que vejo a questão do estatuto do feto/embrião de forma gradativa. A cada dia, o seu estatuto se aproxima mais do estatuto de pessoa. Logo após a fecundação, o estatuto será muito pequeno, não nulo, mas quase, porque já existe algo "em potência". Perto do final da gravidez, o estatuto será muito próximo do estatuto de pessoa (ex. do bebé, da criança, do adulto). Às 10 semanas, estará necessariamente algures entre os dois, abaixo do que estará às 12 e às 16 e às 20 semanas, acima do que estará às 5 e às 6 e às 7. Sendo a liberdade da mulher um valor a ter em conta, e sendo o estatuto do embrião muito pequeno nos primeiros dias, resulta que o aborto será aceitável por qualquer pessoa que não tenha uma visão absoluta sobre o "direito a nascer" nesses mesmos primeiros dias. Em particular, será aceitável a pílula do dia seguinte. A questão é que o valor da liberdade da mulher logo após a fecundação é sempre positivo - e um valor discreto -, enquanto que o valor que concedemos ao embrião é apenas marginalmente positivo. Logo, pelo menos nos primeiros momentos será aceitável a cessação voluntária da gravidez.

É importante perceber isto porque depois a questão colocar-se-á, inevitavelmente, na escolha de um período "razoável" em que deve ser aceitável o aborto. Pode ser aos 5 dias ou aos 11 dias. Mas será uma questão de grau, que terá em conta argumentos filosóficos e - depois - científicos. Por exemplo, poderá ter em conta a capacidade de "sentir dor" do embrião - que não acontece antes das 10 semanas. Porquê? Porque é muito diferente fazer algo que impõe "dor" a um ser e algo que não impõe qualquer dor a um ser.

Depois de aceitarmos que o debate é naturalmente gradativo, tem de se encontrar uma forma de encontrar uma separação entre o permitido e o censurado. A falácia de perguntar "E às 10 semanas e 1 dia? O que é que muda à meia-noite do último dia dessa 10ª semana?" envolve uma incompreensão da necessidade de estabelecer uma separação. Havendo separação, qualquer que ela seja, haverá sempre a questão do "+ 1".

Uma última palavra: apesar de a decisão final, em termos legais e em termos morais, ser eminentemente "dual" - penalizar ou não, condenar ou não - é errado por a questão primordial nestes termos. A questão deve ser posta em termos contínuos, gradativos. Note-se que isto não exclui a resposta "absoluta", de admitir o "direito a nascer" em toda a linha. Mas é a pergunta mais abrangente, a pergunta correcta a pôr na mesa. Não devemos perguntar "Quando é que um embrião ou feto é equivalente a uma pessoa?", mas sim "À medida que se desenvolve, de que modo é que o estatuto do zigoto/embrião/feto se vai aproximando do estatuto de pessoa?" Ou seja, passar da grelha "Sim-Não" para uma escala valorativa para todo o período que uma gravidez dura. Resume-se tudo, em termos de linguagem, a aceitar que o gerúndio é a forma correcta de equacionar o estatuto do embrião ou feto face à liberdade da mulher. Zigoto... embrião... feto... recém-nascido, tudo são etapas, num contínuo de desenvolvimento. Tomar tudo como igual é filosoficamente respeitável, mas não ignoremos todas as implicações disso.

Esta é, creio, a forma honesta de pôr a questão de forma abrangente. Patente, também, noutras passagem do post de Vasco M. Barreto:

Pense-se numa comparação simples, uma de muitas possíveis: independentemente das nossas intenções de voto, a tendência é para que uma IVG às 48 horas seja emocionalmente menos pesada e menos censurável do que aos 48 dias. Porquê? O Eduardo que responda.

1 comment:

Duarte Meira said...

Ainda bem que considera “filosoficamente respeitável” a posição que expus em breve comento crítico ao seu “A Lógica do Meu Sim (2)”. Mas ainda não foi bem entendida. Não se “toma tudo como igual”. O que é igual e absoluto não diz respeito às “etapas”, sim ao direito a viver quem não ameaça a vida de outrem. “Igual” em dois sentidos: porque invariável ao longo de todas essas e as mais etapas da existência; e também porque igualmente válido para todos, universalmente. Portanto, se não está em perigo a vida da mãe, a IVG é sempre igualmente “pesada” e “censurável”, porque é sempre interrupção voluntária da vida de outrem. Que o seja por simples “pedido” ou “mera opção” – que é o que está em causa neste referendo – torna o acto particularmente abominável. E, nestas condições, o que está em jogo é o própria subsistência de um Estado de Direito digno desse nome, no nosso país.

De resto, noto que continua a insistir no termo “pessoa”, perfeitamente irrelevante para o caso. Mas, se insiste nele e na tal “abordagem gradativa”, insisto eu em que o TM fica na obrigação moral e intelectual de revelar urbi et orbi o momento em que o “aproximando” atinge finalmente o fabuloso “estatuto” que tornaria moral e legalmente impermissível a IVG.