Wednesday 7 February 2007

Não, obrigada. Eu voto "sim"

Carla Machado, no Público

Dizia-se que ia ser uma campanha serena. Mas, como de costume, lá tivemos as arruadas com as criancinhas a reboque, os bombos e as frases bem-soantes que nada dizem, do tipo "eu sou pela vida" (e quem de mim discorda, subentende-se, é um emissário da morte!). E tivemos algumas novidades, como o falso e mesquinho argumento dos impostos. Não, obrigada. Não a esta campanha e não aos argumentos do "não". Vejamos:

1. Dizem os partidários do "não" que a lei actual tem um carácter preventivo e evita o aborto. Segundo um estudo da Associação para o Planeamento da Família, cerca de 14,5 por cento das mulheres já abortaram. No último ano realizaram-se entre 17 mil e 18 mil abortos. Não vale a pena discutir dogmaticamente factos: não é por o aborto ser crime que alguém deixa de o praticar. A lei actual não evita o aborto: promove o aborto clandestino. E a esse eu digo não, obrigada.

2. Dizem os partidários do "não" que a lei actual equilibra valores e interesses. Na verdade, é das mais restritivas da Europa e apenas admite o aborto em situações verdadeiramente excepcionais. Não enquadra a grande maioria das situações que levam as mulheres a abortar. Na maioria destes casos, a lei impõe uma norma muito simples: deixar prosseguir a gravidez ou ir para a prisão. A este tipo de "equilíbrio": não, obrigada.

3. Dizem os partidários do não que se pretende liberalizar o aborto. Mas nada dizem quanto ao actual mercado do aborto clandestino, feito por quem quer que seja, sem quaisquer limites temporais, não importa em que condições de saúde. Um mercado claramente liberal, aliás, na forma como reflecte as desigualdades sociais, garantindo o mínimo de cuidados às mulheres mais favorecidas e deixando às que já menos têm o aborto mais inseguro e arriscado. Que - ao contrário do que se tenta fazer crer - ainda causa mortes e severas complicações de saúde. A liberalização pela omissão? Não, obrigada.

4. Dizem os partidários do "não" que ninguém quer ver as mulheres presas. Já é alguma coisa. Embora confesse que me causa alguma estranheza dizer-se que não se quer prender a quem "mata", "sem qualquer justificação", "outro ser humano" - como ouvimos repetidamente afirmar os defensores do "não". Defender que quem aborta deve ser presa é legítimo. É uma posição da qual discordo, mas que respeito. À hipocrisia é que não, obrigada.

5. É certo que existe, do lado do "não", quem defenda com genuína compaixão a busca de alternativas não penalizadoras. Mas é um contra-senso uma lei que existe para não ser cumprida. Mais relevante ainda: manter a lei actual e encontrar subterfúgios para evitar a punição das mulheres nem evita o processo judicial nem resolve a questão do aborto clandestino. Não as prendemos, é certo. Sossegamos a nossa consciência e mostramo-nos dotados de compaixão. Mas do aborto, daí lavamos as nossas mãos. Destas respostas à Pilatos, não, obrigada.

6. Dizem os partidários do "não" que o que é preciso é prevenir o aborto. Concordo. E noto que muitos há que o fazem todos os dias. Não só as instituições ligadas ao movimento do "não" mas muitas outras, entre as quais a Associação para o Planeamento da Família. Porque a verdadeira forma de prevenir o aborto é a contracepção (e, vale a pena lembrar, no aborto clandestino o aconselhamento sobre contracepção é nulo, donde novas gravidezes indesejadas podem surgir). Mas a educação sexual e a contracepção são temas que deixam muitos apoiantes do "não" desconfortáveis... Quanto às instituições ligadas ao movimento do "não" que trabalham com as grávidas, incentivo-as a continuar. Mas não posso deixar de dizer que o seu verdadeiro valor só será conhecido quando as mulheres que a elas recorrem deixarem de estar ameaçadas pela lei. Porque "apoio" versus "prisão" não é uma verdadeira alternativa, pois não?

7. Dizem os apoiantes do "não" que o "sim" deixa as mulheres sós. Este foi, para mim, o argumento mais curioso e revelador da campanha. Porque a verdade óbvia é que é esta lei que deixa as mulheres sem aconselhamento técnico (o "sim" não o garante mas, pelo menos, possibilita-o), impossibilitadas de partilhar a sua decisão pelo medo da denúncia ou, pior ainda, de ver acusados consigo os que as apoiaram. Confesso que só percebi o verdadeiro sentido deste argumento depois de um debate ao longo do qual se tornou claro que o desconforto se deve ao facto de o aborto ser feito "a pedido da mulher" (e de quem mais poderia ser?). Isto porque o movimento do "não" vê as mulheres que abortam como irresponsáveis ou vítimas de más influências... isto é, como incapazes de decidir por si só e em consciência. E esta visão menorizada da mulher, eu rejeito, obrigada.

8. Dizem os apoiantes do "não" que mudar a lei não vai resolver o problema do aborto. É verdade. Mas resolverá a grande maioria das situações, sabendo-se que mais de 70 por cento dos abortos são feitos até às dez semanas. Continuarão a existir abortos realizados tardiamente, é verdade. Mas é melhor uma lei que resolve a maioria dos problemas do que uma que não resolve problema nenhum. E é plausível imaginar que a legalização diminua os abortos mais tardios, muitas vezes associados à falta de informação ou recursos.

9. E chegamos à incontornável questão da vida humana. Apesar dos factos biológicos estabelecidos e que parecem relativamente incontestáveis: um embrião de dez semanas tem, obviamente, vida e essa vida só pode ser humana; não tem, contudo, aquilo que nos distingue qualitativamente das outras espécies, que é a consciência organizada, e por isso não é uma pessoa. Convenhamos que esta mera factualidade é menos apelativa do que as imagens de bebés ternurentos e mães felizes da campanha do "não". Mas que nem representam a realidade do embrião, nem sequer as condições de vida da maioria das mulheres que abortam. Alguém dizia, há uns dias, que "cada mãe sabe, quando está grávida, que dentro de si está uma pessoa". É verdade, quando a gravidez é desejada. É verdade que se acaricia a barriga, que se sonha com a criança, que imaginamos o seu futuro. É verdade porque nesse caso o afecto nos leva a projectar nas células que dentro de nós crescem algo que elas, objectivamente, não são. Mas não é isto que acontece quando uma mulher quer abortar. Penalizá-la por isso? Não, obrigada.

10. No domingo, as questões que se nos colocam são, na verdade, apenas estas: concordamos ou não que as mulheres que todos nós conhecemos que já abortaram (as nossas amigas, colegas, vizinhas, mães, avós, irmãs) possam ser perseguidas e condenadas? Concordamos ou não com a perpetuação do aborto clandestino? A minha resposta é simples: não, obrigada. Eu voto "sim".

No comments: