Friday 26 January 2007

Da essência e legitimidade do lucro no negócio do aborto clandestino

Este post analisa a essência - as diversas componentes - do lucro no negócio do aborto e a legitimidade de cada uma delas. Apesar de ser algo longo e muito ligeiramente técnico, será crucial para três importantes objectivos:

1. Desmistificar a diabolização que se faz, de forma inaceitavelmente generalista: i) daqueles que providenciam o aborto clandestino; ii) do lucro por eles recebido;

2.
Defender que é inaceitável que, numa situação em que a mulher não seja penalizada, os auxiliares do aborto o sejam;

3. Combater a ideia de que só com a comparticipação do aborto por parte do Estado e que "algo efectivamente mudará, sobretudo para as mulheres mais pobres". Isto não tem razão de ser. O fim da ilicitude do aborto, por si só, permitirá melhorias de vária ordem.

Este post abordará os dois primeiros objectivos supra mencionados, ficando o terceiro para um post à parte.

Comecemos por um ponto irrefutável: uma mulher só consegue fazer um aborto não auto-infligido se alguém a ajudar. Excluindo casos particulares de caridade - de todo o modo ilegal, com a actual lei - só haverá quem esteja disposto a fazê-lo mediante uma compensação. Nada de particularmente surpreendente. O lucro obtido no negócio do aborto é, por conseguinte, condição não só necessária, mas verdadeiramente intrínseca à existência, numa economia livre de mercado - ainda que clandestina - para que um aborto possa ser realizado.

É preciso entender que na avaliação da legitimidade do lucro no negócio do aborto temos de ter em conta a "essência" desse negócio, para avaliarmos, com honestidade, em que é que isso contribui para uma maior ou menor legitimidade. Ou seja: para aqueles que tenham por hábito criticar todo ou algum lucro obtido através de trocas livres entre adultos, é preciso ver o que é que o negócio do aborto tem de diferente. Senão, não estarão a criticar a legitimidade do lucro no negócio do aborto, mas somente do lucro em geral. (Já sei que alguns quererão discutir a expressão "trocas livres", peço apenas que atentem, tanto quanto possível, ao ponto principal do post. Grato em antecipação.)

Pensemos numa clínica clandestina, que funcione num andar arrendado e que empregue um médico e dois ajudantes. O lucro desta clínica pode ser dividido, como o de qualquer outra empresa, em 1) lucro normal e 2) rendas económicas. Por rendas, os economistas entendem tudo aquilo que é auferido para além do lucro normal. O lucro normal diz respeito à remuneração que os factores empregues poderiam obter numa actividade alternativa em situação de concorrência perfeita, isto é, onde nenhum agente económico tivesse qualquer poder de mercado. E isto tendo em conta o risco inerente ao negócio.

No caso em questão - o do negócio do aborto na clandestinidade -, podemos proceder a uma subdivisão das duas componentes essenciais (e gerais) do lucro total obtido. O lucro normal subdivide-se em 1.1) lucro normal sem penalização e 1.2) prémio de risco por penalização; as rendas económicas subdividem-se em 2.1) rendas por informação imperfeita, 2.2) rendas por "aproveitamento" da situação de fragilidade da mulher e 2.3) rendas relativas a outros factores.

1.1) O lucro normal sem penalização tem em conta a remuneração que o pessoal médico e de enfermagem exige receber para fazer o aborto no sentido estrito de estar a realizar uma actividade quando poderia estar a realizar outras - e isto assumindo que não existe penalização para o aborto (estamos a estudar cada componente de forma isolada). Um médico que faz um aborto poderia estar a ganhar dinheiro de outra forma, logo, terá de cobrar o suficiente para compensar não se ter dedicado a outra actividade.

Repito que não há falácia maior do que pensar "Ah, esse malandro, a lucrar com a miséria das mulheres!". Quem quer que use este argumento, tem de abrir no dia dia seguinte uma clínica gratuita (mesmo que clandestina) de realização de aborto e/ou contribuir financeiramente para subsidiar as mulheres que a elas recorrem. Há muitos a quem lhes custa aceitar que uma troca livre é uma troca livre, e que uma troca livre necessariamente beneficia as duas partes nela envolvidas.

A avaliação dos "custos de oportunidade" para o médico que se dedica a fazer abortos e não outra coisa tem, naturalmente, de ter em conta os custos (equipamento, renda do andar, etc). Esta componente do lucro é inteiramente legítima. Mais, ela é, em geral (isto é, não só no negócio do aborto, mas na economia em geral), um sinal de que a liberdade económica existe. Só um opositor da liberdade de troca entre agentes é que pode criticar esta componente do lucro. Contudo, mesmo que a critique, terá de admitir que o facto de a troca ser relacionada com o aborto não traz nada de novo a essa crítica. Logo, não há autoridade adicional para dizer que o negócio no aborto é mais ilegítimo que outros.(Repito: falo só desta componente).

1.2) O prémio de risco por penalização diz respeito apenas à remuneração adicional que é exigida pelo serviço de forma a compensar as penas possíveis em que se pode incorrer e a probabilidade de cada uma delas ocorrer. Esta componente do lucro é inteiramente legítima. É natural e expectável que alguém que se ofereça para fornecer um serviço a outrém, com isso incorrendo em penas de prisão e outras (que, recordo, já aconteceram), exija uma compensação por isso. Estranho seria se não o fizesse.

2.1) As rendas por informação imperfeita existem porque a mulher não tem, como acontece no paradigma de uma economia competitiva, informação perfeita sobre o mercado em questão. Concretamente, no caso do aborto clandestino, não tem informação perfeita sobre a oferta de serviços e sobre o seu preço. Isto é inteiramente expectável, dado que o mercado não é, por definição, transparente. Pode haver muito "boca-a-boca", mas a clandestinidade implicará sempre que estamos muito longe do paradigma de um mercado com informação perfeita.

Logo - estando afastados desse paradigma (que é mesmo uma ferramente "teórica" que serve de benchmark, ajudando a compreender o quão "imperfeitamente competitivas" são as situações reais, que realmente importam analisar) -, temos, inevitavelmente, a presenção de rendas económicas derivadas da existência de informação imperfeita, a tal remuneração acima do "lucro normal", o que seria obtido numa situação de concorrência perfeita.

Ou seja, quem oferece o serviço de abortamento cobrará preços mais altos do que aconteceria num mercado competitivo. (Volto a repetir que quem não aceite - seja positiva, seja normativamente - esta "inevitabilidade", tem de, em coerência, contribuir com fundos para ajudar as mulheres que recorrem à clandestinidade para fazer um aborto). Para quem aceite os princípios que subjazem a uma economia de mercado, verá esta componente como inteiramente legítima.

No máximo, poder-se-ia argumentar que certas situaçóes de excessivo poder de mercado não são aceitáveis e que os consumidores devem ser protegidos. Um exemplo: a questão do arredondamento dos juros na banca, onde a nova legislação tornou tudo mais transparente - fazendo diminuir o grau de infomração imperfeita existente. Mas o que importa é perceber que mesmo que defendamos esse ponto, estas rendas não seriam imputáveis ao facto de estarmos perante um negócio de abortamento, mas apenas ao facto de haver informação imperfeita.

Ora, tendo em conta que o aborto, com a actual lei, só poderá ser clandestino, é inevitável que exista informação imperfeita, dado que não pode haver publicidade em larga escala, etc. Em suma, mesmo os que achem que estas rendas não são legítimas em geral, isto é, em todo e qualquer mercado, terão de concordar que não só é inevitável que estas rendas existam com o aborto clandestino - por ser clandestino -, como a essência do negócio do aborto não faz aumentar essas rendas.

2.2) As rendas por "aproveitamento" da situação de fragilidade da mulher dizem respeito ao que resulta do "poder de negociação" acrescido que quem faz o abortamento tem - ou melhor, se permite ter, se tal decidir - sobre a mulher, dado o estado de necessidade e urgência em que se encontra e ainda, dada a clandestinidade, quer a falta de alternativas quer a falta de informação sobre elas (comparo tudo isto com a situação de um mercado competitivo, em que não é possível auferir "rendas económicos", mas apenas "lucros normais", isto é, a remuneração normal dos factores empregues).

Embora a mulher só faça um aborto se quiser (razão pela qual será possível encontrar um argumento contrário, ainda que não muito humano), parece-me razoavelmente óbvio que esta componente do lucro seja considerada menos pacífica quanto à sua legitimidade. Para não me alongar mais, considerarei esta parcela do lucro como não legítima.

2.3) As rendas relativas a outros factores incluem todos os outros tipos de poder de mercado não referidos anteriormente. Basicamente, advém, para além de alguma possível diferenciação dos serviços oferecidos, sobretudo do poder de mercado no sentido mais imediato da palavra: o poder que advém do facto de não haver suficientes prestadores deste serviço para que o preço baixe para o nível que vigoraria caso existisse concorrência perfeita. É outra parcela inteiramente legítima do lucro.

Em suma, apenas uma parcela do lucro global de quem providencie abortos pode ser considerada ilegítima: a que resulta de uma "exploração" da situação de fragilidade da mulher.

Note-se que, no que se refere à componente 2.2), uso a palavra "exploração" num sentido positivo e não normativo. A avaliação normativa que faço - de sugerir que tal exploração é ilegítima - resulta do contexto. Até porque falo de exploração da "situação" em si e não da mulher. Ou seja, não uso a palavra no sentido marxista de "exploração do trabalhador" ou, de forma mais genérica, "exploração de vítimas", mas, factualmente, no sentido de haver um aproveitamento de uma oportunidade (sem carga normativa, repito) em que um dos lados tem, quase sempre, um poder de negociação diminuído pela urgência do acto e pela falta de alternativas. O juízo normativo vem depois.

Isto tem consequências no plano económico (que ficam para um outro post) e também da argumentação em torno da penalização tout court dos auxiliares do aborto, como referi aqui e como também já tinha referido o Adolfo Mesquita Nunes. Não sei qual será o peso da componente 2.2) no lucro total (médio) de quem providencia o aborto. Creio que não será o principal. Apesar do número pequeno de penas até agora ocorridas, elas são reais e quem se aventura por um negócio ilegal tem de ter cuidado e pensar duas vezes. Penso que a componente primordial dos lucros será o prémio de risco, que está associado à sanção legal e também (não o disse antes, digo agora) à sanção social (quem é que gostará de publicitar que se dedica a fazer abortos clandestinos?). A componente 2.1) também não pode ser desprezada, uma vez que a clandestinidade promove preços mais altos pelo simples facto de não haver publicitação e transparência na avaliação dos serviços oferecidos. Também a componente 2.3) é relevante. Se o negócio fosse lícito, haveria mais concorrência. Não o sendo, é inevitável que os preços sejam mais elevados do que os que vigorariam numa situação mais concorrencial.

O que está em causa é que a ideia generalista que quem providencia o aborto é um "bandido", um "explorador", é profundamente cega e/ou demagógica. Só uma parcela poderá ser considerada ilegítima e mesmo essa, pelo menos numa perspectiva libertária, poderia ser facilmente criticada, já que nada obriga - efectivamente - a mulher a recorrer a alguém para fazer um aborto. Por muito grande que seja o seu estado de necessidade, será sempre uma escolha livre. Esta seria, creio, uma possível crítica libertária à ilegitimidade desta componente do lucro no negócio do aborto, que não necessariamente uma crítica liberal (ou seja, mais ampla, de todo o espectro liberal e não apenas do espectro liberal-libertário).

Concluindo: não há razão para aceitar a penalização dos auxiliares do aborto quando a mulher não é penalizada, porque, por um lado, eles são meros autores materiais, enquanto a mulher é autora moral; e porque o lucro é todo - ou quase todo - ele legítimo. Sei que isto custa a ler a muita gente, mas é a mais pura das verdades. E se isto não é convincente, pensem lá bem a tragédia que seria se houvesse menos gente a providenciar o aborto: i) a oferta descia; ii) os preços subiam; iii) a mulher teria mais dificuldade em encontrar um sítio para abortar atempadamente; iv) muitas nunca conseguiriam fazer o aborto desejado e acabareiam por trazer ao mundo inocentes sem as condições (pessoais, familiares, afectivas, sociais, financeiras, etc) que gostariam de ter - porventura aquilo que provavelmente mais as inclinaria a fazer o aborto.

Também não é dizer que quem providencia o aborto é um "salvador". Bastará dizer, sem ser cínico nem ser incrédulo, que cada um reage a incentivos. Há oportunidades de mercado? Aproveitam-se. Há mulheres que querem abortar e não encontram sítio legal onde o fazer? Há que ponderar abrir um negócio de abortamento, ter em conta a penalização associada a essa actividade, perceber qual o preço que se poderia cobrar e, finalmente, decidir ou não se isso é melhor do que a actividade que actualmente se exerce. Já disse: quem achar isto estranho, dê dinheiro - em escala proporcional ao seu grau de indignação - para acabar com a "usura" do aborto clandestino.


As conclusões para os dois primeiros pontos propostos:

1. O lucro no negócio do aborto clandestino, tirando uma parcela pouco relevante, é inteiramente legítimo.

2. Não faz sentido penalizar quem auxilia o aborto quando a mulher não é penalizada.

O terceiro ponto será abordado num próximo post.

PS: um ponto que poderá ser levantado: quanto ao facto de este negócio não pagar impostos, isso não pode ser considerado como ilegítimo em si mesmo, uma vez que não existe a possibilidade de "fuga aos impostos". Sendo ilícito, o negócio do aborto clandestino não é passível de tal acusação.

8 comments:

Miguel Madeira said...

A respeito do "lucro do aborto clandestino", há mais um ponto que gostaria de frisar (e que pode ser relevante para muita gente que é pela legalização do aborto mas que "torce o nariz" às pessoas que ganham dinheiro com ele): é que esse chamado "lucro" é, em larga medida, remuneração do trabalho.

Miguel Madeira said...

Outro ponto: creio que mesmo rendimentos ilícitos são sujeitos a imposto.

Miguel Madeira said...

Mais outro ponto (e depois de ter lido com atenção o texto).

Da perspectiva de alguém que aceite, na economia em geral, o "lucro obtido através de trocas livres entre adultos ", a "renda 2.1" não será mais reprovável que a "renda 2.2"?

Na renda 2.1., o fornecedor de abortos está mesmo a beneficiar objectivamente da ilegalidade do aborto.

Duarte Meira said...

Tanta cera com tão ruim assunto.

As clínicas privadas que estão à espera de abrir as portas em Março agradecem o texto.

Ainda aqui o essencial é ignorado: quanto custará a preços de mercado o homicídio de um inocente?

Pedro Serôdio said...

Apesar de pouco poder contribuir para uma análise tão cristalina como esta, gostaria de fazer um pequeno comentário ao ponto 2.2).
A ser resultante da situação de clandestinidade do acto, motivada pela existência de um impedimento legal à sua livre procura, a componente do lucro em questão é absolutamente ilegítima, como bem frisa o autor; mas parece-me ser essa a sua única possibilidade para a sua existência.
Ou seja, a renda económica em causa deve-se ao facto de, numa situação de desespero, a mulher se deparar com um mercado artificialmente restrito e, como tal, não poder proceder a uma escolha mais ponderada ou, delegando essa responsabilidade a um familiar, este não poder proceder a um ordenamento de preferências relativamente a cada solução existente no mercado e avaliá-las consoante os seus custos e as restrições existentes.
Na situação concorrencial, esta componente tenderia a desaparecer pelo processo usual da competição, já que, mesmo estando fragilizada, a mulher poderia delegar a sua escolha para um agente (que poderia, inclusivamente, ser uma instituição de apoio e aconselhamento) que estivesse em condições de o fazer.
Há ainda, a meu ver, a possibilidade de o pessoal médico e de enfermagem exigir uma compensação adicional pela prática de uma intervenção que poderão, eventualmente, considerar moralmente questionável e, mesmo na eventualidade de poderem oferecer o serviço agentes que assim não a considerem, fazer com que o preço de mercado reflicta esse "custo moral". Esta última sugestão poderá ser vista à luz custos de oportunidade, mas creio que se pode ganhar algum "insight" se for feita a diferenciação.
Parabéns pelo blog.

Uma pergunta ao comentário acima.
Gostaria que me respondesse ao seguinte: Se de uma violação resultar uma gravidez, a mulher tem legitimidade para abortar? Se sim, o embrião "assassinado" é de calibre inferior a um embrião que resulte de uma concepção "normal"?

Rui said...

Tiago gostaria de ver tratado, por ti, as alterações que uma vitória do sim traria.

Fazes um bom desenho do que é, e gostaria de conhecer a tua visão do que seria caso alguma coisa mudasse.

Introduzo alguns pontos:
Emprego.
Despesas com saúde vs. impostos e diminuição da economia paralela.
Investimento.
Diminuição de transferências para o exterior.
Diminuição do lucro no negócio do aborto.

timshel said...

desculpa mas fiz um "plágio" deste post

Lilly Rose said...

Excelente post. Falta apenas referir que a maior parte destas clínicas não estão sujeitas (não se sujeitam) a auditorias de qualidade e que o seu conceito de "serviço ao cliente" pode ser altamente deficitário. Quando se trata de "empresários em nome individual" a exercer a prática de IVG, o risco de não satisfação - para o cliente - aumenta ainda mais.

Se o Não ganhar (e eu espero sinceramente que isso não aconteça), devemos bater-nos pela criação de um ISO xpto para estas clínicas?_______ mesmo que tal signifique ver os preços aumentar, justificadamente, é claro!