Wednesday, 24 January 2007

Falácias do Não (2)

Há muito quem use o argumento de que, caso ganhe o Sim, a mulher vai poder passar a fazer um aborto sem qualquer justificação. Assim mesmo: sem qualquer justificação. Será que alguém, na plena posse das suas faculdades mentais e de alguma boa fé, pode achar que uma mulher não faz um aborto a não ser que tenha justificações suficientes para o fazer? Marcelo Rebelo de Sousa sugeriu isto na RTP e repetiu-o em vídeo, que vale a pena ver. João César das Neves acompanha-o na ideia de que fazer um aborto é coisa "fácil", tão fácil que caso o Sim ganhe "o aborto será tão normal como um telemóvel". Haverá, diz o economista, uma proliferação em massa do aborto - deduzimos que por ser uma coisa agradável e apetecível.

Bom. (Respirar fundo.) Caso o Sim vença, será legalizado o aborto realizado até às 10 semanas, a pedido da mulher, em estabelecimento autorizado. "A legislação que se seguirá a essa eventual vitória do Sim poderá exigir a frequência por parte da mulher de sessões de aconselhamento ou a obrigação de respeitar um período de reflexão de uma ou duas semanas" - escreve o leitor José Barros. Não é necessariamente verdade, portanto, que se o Sim ganhar a mulher poderá fazer um aborto sem qualquer justificação. Podem ser exigidos alguns requisitos para que o aborto seja legal, isto é, de acordo com a lei, de acordo com o que vier a ser legislado caso vença o Sim.

"Legalização significa que a mulher não terá realmente de ter um motivo forte para fazer um aborto. Mas só quem esteja de má fé é que acredita que alguma mulher aborta porque lhe apetece" - escreve, novamente, José Barros. Para evitar juízos de carácter sobre quem acha que uma mulher decide fazer um aborto "na desportiva", socorro-me do que pode estar por detrás disto: uma Falácia Indutiva, mais concretamente, uma falácia por Generalização Precipitada.

Eu já vi na televisão e já li e não ponho por um segundo em causa que existam algumas mulheres para quem o aborto é uma decisão relativamente fácil de tomar, porventura descontraída, até encarada como método aceitável de último recurso ou mesmo como método anti-concepcional ("se engravidar, no worries, é só pedir mais um para a marquesa três") . Mas serão quê, 0.1%, 0.2%, 0.5%? Alguém de boa fé e com alguma vivência humana (que inclua mulheres, de preferência imensas, que quanto maior a amostra, melhor) achará que a grande maioria delas, para não dizer a quase totalidade delas passará, para lá das sequelas físicas, por um dilema psicológico tremendo por ter consciência que acaba com o que é, no mínimo, um projecto de vida que se encontra dentro dela?

Qualquer pessoa que tenha contactado directa ou indirectamente com um caso de aborto saberá do que estou a falar. Não é apelar a "neo-realismos", "vãos de escada" e coisas que tais, acreditem. É da natureza humana. É impossível uma pessoa não se questionar sobre o acto último que é fazer um aborto antes de o fazer. Como disse, não duvido por um segundo que existam algumas excepções, de uma ou outra mulher que faça um aborto "na descontra". Mas uma andorinha não faz a Primavera. (Ou, se preferirem, um corvo não faz um Inverno).

Pondo de parte a má fé e a falta de contacto com a realidade destas situações, só posso concluir reiterando que a falácia indutiva, por generalização precipitada, que consiste em sugerir, com base em casos perfeitamente fora de série e escassíssimos, que as mulheres se decidem a fazer um aborto sem terem primeiro encontrado justificações suficientemente fortes que permitam tomar essa decisão dolorosa e irreversível é algo assinalável, verdadeiramente notável.

Face aos que dizem e repetem, tanta vez com sorrisos de cândida empatia no rosto, Sem qualquer justificação, não!, convém andar prevenido. Com calmantes no bolso.

4 comments:

GPN said...

Não sei como consegue traduzir estas questões em percentagens, talvez para dar força ao argumento...Qual o Ser Humano que numa situação extrema consegue apresentar a racionalidade que aqui tenta introduzir? Qual o ser humano que, e numa situação de enorme sufoco, não seguirá o caminho mais fácil? Não será a maioria? Claro que depois, e só quando a “poeira assentou”, todas as mulheres falam do enorme sofrimento (causado por elas próprios). Mas a vitoria do “Sim”, que espero que "Não" aconteça, só vem mostrar que temos estado que desistiu do problema, pelo contrario incentivou-o. Talvez depois fale-se de clínicas (as custas do estado, claro) de acompanhando para as mulheres que praticaram o aborto, que o próprio estado assim o incentivou. O que dirão nessas consultas? Devia ter pensado melhor? Estou curioso….

Miguel Madeira said...

"Qual o ser humano que, e numa situação de enorme sufoco"

as palavras chave aqui são "enorme sufoco" - GPN acaba por concordar com Tigao Mendes quando este diz que a maioria esmagadora das mulheres fazem abortos quando têm "justificações suficientemente fortes que permitam tomar essa decisão".

fcastro said...

Tiago,

Parabéns pelo blog.

Neste post levantas um problema relevante e torna muito dificil as "conversas" entre pessoas com visões alternativas(daí o teu respirar fundo). Quando numa qualquer discussão sobre este tema, alguém argumenta com o "aborto por capricho", penso no "teu" concordemos em discordar. Ainda não percebi se não será uma táctica para tirar o interlocutor "do sério", e assim terminar logo com a discussão de ideias.

Abraço

GPN said...

Miguel Madeira, temo que não tenha percebido o meu argumento. O que diz não faz sentido a luz do meu raciocínio. Será precisamente o contrario, essa "justificação" que o "Sim" tenta encontrar, e defender, é precisamente uma alienação de responsabilidade, o caminho mais “fácil” (embora depois acabe por ser o mais difícil), o “deitar as culpas” noutro ser humano, o tentar “esquecer” rapidamente o assunto, resumindo, aconteceu um “imprevisto” (ou um azar como gostam de dizer) e, nessa situação em que o mundo parece encolher (situação de sufoco) o caminho mais fácil é, e será, fazer um aborto. Ou seja, raramente esta decisão é tomada de uma maneira justificada (racional). Percebe a diferença? A única maneira de evitar seria não “criar condições” para engravidar, mas isso já aconteceu não é?...